Quando os números conseguem explicar uma pessoa, não importa a equação matemática desses números, mas sim esse alguém “a mais” que os números explicam; esse alguém que ultrapassa a soma zero na teoria dos jogos humanos. Paulo Coelho é uma dessas pessoas. Vender mais de 350 milhões de livros – sete vezes mais do que os vendidos pelo segundo escritor brasileiro mais lido, Jorge Amado – é ingressar na lista dos top 25 do mundo. Melhor do que isso, independentemente da posição no ranking, é fazer parte da privilegiada lista da história da literatura universal, considerando todas as línguas.
A propósito de línguas, estar presente nas prateleiras de livrarias e bibliotecas públicas e privadas em mais de 170 países é um feito que também coloca Paulo Coelho ao lado de Camões, Saint-Exupéry, Twain, Cervantes, Shakespeare, Tolstói, Borges, Hemingway e outros poucos que transcendem as vendas e são os mais lidos em todo o planeta, ontem e hoje. Como diria Mário Jorge Lobo Zagallo, os críticos têm que engoli-lo.
O fenômeno Paulo Coelho, porém, ultrapassa seus próprios números – que podem aumentar, assim como sua obra, porque, diferentemente dos outros, ele está vivo. Ele agrega um diferencial pouco comum: também é, ou foi, letrista. Dessa vez, sua notoriedade é reforçada pela parceria que deu às suas letras um mito exclusivamente brasileiro: Raul Seixas. O seriado, que a Globoplay acaba de lançar e rapidamente se tornou um dos mais assistidos no país, narrando de forma impecável a vida truncada do artista baiano que driblou a ditadura melhor do que ninguém, revela o que já se sabia, mas não estava tão incorporado na memória dos milhões de fãs: a simbiose entre Coelho e Seixas, ou melhor, entre Paulete e Raul.
Ainda que nunca tenha saído do interesse popular e jornalístico, Paulo Coelho voltou. De volta às mídias e na boca das pessoas, que, saciando ansiedades, devoraram os oito episódios de Raul Seixas: Eu Sou de uma só vez, um após o outro. O próprio Paulo também os assistiu assim, sem pausas, como revelou em entrevista exclusiva à Rolling Stone Brasil, quebrando o jejum de entrevistas que se impôs após a pandemia, para não interromper o momento de reflexão que vive em Genebra, Suíça, onde reside há dez anos, após ter passado a década anterior nos Pirineus franceses, sob a inspiração da Virgem de Lourdes.
Paulo, gostou da série?
Sim, sim. Olha, quando acabei de assistir, comecei a chorar, porque foi muito fiel, exceto por uma coisa.
Qual?
Quando saí da prisão, não fui à casa do Raul, ao contrário. Todo mundo sumiu naquela época… Mas, pelo resto, foi muito fiel, até a coisa do telefonema é verdade.
Foi essa fidelidade da série que o fez chorar?
Aí, cara, eu disse: “Porra, nesses anos que passei com o Raul, vivi muito”. Quer dizer, sempre vivi muito. Não tenho do que me queixar com o Paulo que já deu mais de uma vez uma volta no mundo. Comecei a chorar.
Ver sua juventude passar o emocionou até as lágrimas. Foi isso?
Sim. A empregada que estava em casa perguntou: “Está chorando por quê?” Eu disse: “Porque acabei de ver a série, aliás, você tem que ver”. Aí ela disse: “Ah, vou ver”. Acho que não viu até hoje. Mas foi muito emocionante.
Já que você começou pelo momento em que ficou preso no DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), a força policial secreta da ditadura militar, você estava mesmo afiliado ao Partido Comunista?
Nada.
Mas, a série dá a entender que você estava afiliado…
Não, não dá a entender isso. Eu fui trocado por outra pessoa com o mesmo nome, um homônimo.
O Raul fala isso para o policial que o interroga. Mas no seriado parece ser uma “saída de emergência” do Raul em defesa sua. Bom esclarecer isso.
Depois, saiu o livro “Raul Seixas: Não Diga Que a Canção Está Perdida” e o autor [Jotabê Medeiros] foi pesquisar e descobriu que era um homônimo do Partido Comunista. Ele contou que tinha sido confundido com outro cara chamado Paulo Coelho Pinheiro. Eu sou o Paulo Coelho de Souza. Sei lá, eu só pensava em sexo, drogas e rock and roll. Não tinha a menor chance.
Não era uma geração politizada. Obviamente, incomodava a ditadura, mas sexo, droga e rock and roll era o que rolava, essa é a verdade. Também não era uma exclusividade de vocês; era parte dessa geração. Aqueles dias nos quais você esteve detido, o que aconteceu?
Me torturaram. Aliás, eu escrevi um texto para o Washington Post, no qual descrevo em detalhes a tortura. Quando eu era torturado, eu dizia que confessaria o que quisessem. Eles não queriam confissão nenhuma, mas me dar um susto. Acho que a essa altura eles já tinham concluído que eu não tinha nada a ver.
Por isso liberam você?
Sim, porque descobrem que eu não tenho nada a ver com aquilo… Eu era a pessoa errada. Era outro cara que pertencia ao Partido Comunista e tinha o mesmo nome que eu, entende?
E o Raul também não era politizado?
Não. Mas ele entrou e saiu; aquilo que a série define. “A gente não está atrás de você, Raul. Está atrás do seu parceiro”. E o “seu parceiro” era eu.
A cena em que você está esperando ele, lá dentro do DOPS, e ele sai e vai ao telefone; como os policiais sabiam que você estava aí? Essa cena é correta? Só pegaram você porque foi acompanhar Raul?
Exatamente. E ele pegou o telefone e cantou. O que não é correto é que saí e fui encontrar com ele. Eu fui para a casa dos meus pais.
Seus pais, também cariocas, eram intelectuais que nem você? Digamos, dedicados à música, escrita ou alguma atividade nesse sentido?
Não, não… ao contrário. Eles queriam que eu fosse igual a eles — diploma, ir para a universidade, esse tipo de coisa —, e por isso me internaram três vezes numa casa de saúde. Porque eu não queria ser igual a eles. Aí me botaram numa casa de saúde… Aliás, eu tenho uma fundação aqui [em Genebra, Suíça] com um cofre, que era de um antigo banco, e eu comprei. Marcelo, meu arquiteto, colocou só a minha ficha de preso e a minha ficha da evasão da casa de saúde dentro do cofre.
E seu pai era profissional de qual área?
Engenheiro civil.
Seus pais morreram quando você já tinha sido um escritor de sucesso ou faleceram antes?
Minha mãe faleceu muito antes. Sem desculpa de me ter colocado numa casa de saúde. Porque eu estava maluco. Eu queria ser alguém que era diferente do que eles imaginavam. Meu pai depois faleceu e eu, graças a Deus, tive a condição de ajudá-lo com dinheiro.
Essa atitude diferente que você tinha, como você era muito novo e já escrevia na Revista 2001, de onde você acha que surge essa inclinação para as letras, a música? Ainda que você, quando conhece Raul na série, fala que não é muito ligado com música, mas depois, evidentemente, foi um letrista fantástico.
A série, nesse ponto, é fiel. Isso também está na minha biografia, “O Mago”, escrita por Fernando Moraes. Vale a pena ver. Conta a minha vida toda. É muito fiel.
Essa coisa intelectual sua surge… de livros? Qual era o seu Quixote? Porque o Quixote aparece muito na vida do Raul.
É, é. Bom, Quixote é uma referência para todo mundo, né? Porém, o meu escritor preferido é um argentino.
Jorge Luis Borges.
Borges tem histórias magníficas. Eu li tudo do Borges. Mas Quixote eu li meio por obrigação.
Quixote é muito longo.
Muito.
Acho que todos nós lemos por obrigação.
Deixa eu te perguntar. Borges era leitura obrigatória na Argentina?
Nunca foi. Aliás, ele precisou ter reconhecimento internacional para se consagrar em seu país.
É igual ao Brasil. Com exceção dos Estados Unidos, todos os países são assim com seus nativos, entende? Você sabe que Borges nasceu no mesmo dia em que nasci, 24 de agosto? E morreu aqui, em Genebra, onde vivo agora…
Bela coincidência. Por que você escolheu, agora, depois dos Pirineus franceses, Genebra?
Eu não sei por que Genebra. A minha vida é guiada por… eu nunca podia imaginar que o Caminho de Santiago ia mudar tanto a minha vida. O Paulo Coelho é um antes e outro depois do Caminho de Santiago. Pensando nisso, eu fiz o que eu tinha que fazer. Christina [Oiticica, artista plástica e esposa de Paulo, presente na entrevista] diz que pelos fondues… mas voltemos.

Voltemos. Aquele encontro na praia, Paulo. É real e verdadeiro? Vocês viram o disco voador ou não?
Sim, e eu acredito que vimos. Eu não me lembro direito. Tem muita coisa da série que não me lembro direito, mas sim. Eu me aproximei do único cara que estava na praia, que era ele, e vimos o que pelo menos pensamos ser um disco voador.
Ou seja, vocês realmente se conheceram aí?
Na praia, é.
Porque no seriado, é aparentemente a mulher do Raul que recomenda a ele para procurar um parceiro, no caso, trabalhar com você. E você duvida muito, inicialmente, em fazer a parceria.
Claro. Porque era música, e música era uma coisa, enfim, de segunda classe. Então, para mim, intelectual clássico daqueles anos, ficava muito contente se ninguém me entendia. Eu não queria ser entendido, eu queria ser complicado. Ser um gênio sempre é complicado. Até que Raul… ele realmente tem esse mérito. Ele disse: “Que bobagem, cara. Não tem nada a ver com isso. Ser gênio é ser entendido”.
Essa reflexão do Raul foi que realmente os aproximou, gerou a parceria? Essa foi a faísca?
A faísca foi que eu precisava de anúncios. Então, eu disse: “Pô, vou jantar com esse cara, da gravadora, porque pode ser que eu consiga um anúncio com ele”. E aí eu vi a música, mostrou as músicas, principalmente essa “Oh! Seu moço! Do Disco Voador”, que foi feita, se não me engano, baseada no nosso encontro na praia.
A necessidade do anúncio se entende, OK. Mas a faísca foi essa música. E a gravadora?
Eu fiquei muito impressionado, porque aquilo era um mundo totalmente diferente de mim. Bom, aí na gravadora tinha salgadinhos, sabe? Eu disse: “O cara tem salgadinhos… estão me oferecendo salgadinhos, que horror!”.
Risos…
E eu doido para acabar com aquilo, né? Ir embora com uma garantia de que eu teria um anúncio, o que não consegui. Mas ouvi a música que ele me mostrou. Eu disse: “Que cara interessante”. A parceria veio naturalmente. Não posso te especificar como a coisa foi evoluindo. Mas ele vivia lá em casa, ia bater papo. No começo, eu ainda tinha certa esperança de que ele ia me dar um anúncio. Depois, passei a gostar da companhia dele. Aí a gente ficava conversando abobrinha. A separação foi a prisão, a única coisa que não é fiel na série.
Esse capítulo, evidentemente, marcou muito você. Você acha que ele te dedurou quando o interrogaram?
Não. Tem uma biografia que diz que sim, mas não. Eu não acho. Antigamente todo mundo que era preso e solto e queria sair do país tinha que ir no DOPS para explicar porque queria sair do país. Aí eu fui e uma vez um cara lá, no DOPS, botou assim para eu ver o resultado, né? Ou seja, eu era tão apavorado que nem olhei aquele papel. Olhei para o outro lado. Dizia: “Se eu olhar e descobrir…”
Voltemos à série. Você se sentiu perfeitamente representado pelo ator João Pedro Zappa? Porque a voz dele é igual à sua.
Inacreditável, né? Até achei que fosse inteligência artificial, mas não. Eu gostei demais do cara. Fiquei muito surpreso da voz dele ser assim, sabe? Muito parecida com a minha. E os gestos, as falas…
Você já se comunicou com o ator? Ele te procurou antes das filmagens?
Nada. Até eu li uma entrevista na qual ele disse que não queria se deixar influenciar, mas não me procurou. Agora a Netflix vai fazer uma série sobre o meu primeiro livro, “O Diário de um Mago”, e o ator me procurou. Vai ser o Rodrigo Santoro.
E Ravel Andrade, o ator que representa Raul? Ele parece representá-lo muito bem.
Claro! Eu olho para aquele cara e vejo o Raul.
Falou isso com o diretor da série, Paulo Morelli?
Não. Eu tentei falar com o diretor, não consegui. Mas para agradecer. Acho que agradecer é uma coisa importante. Fernando Meirelles, da produtora O2, me escreveu e agradeceu. Na mesma hora eu falei que tinha adorado a série. E todo mundo estava esperando que me posicionasse, se eu adorei.
Paulo, você não considerava música e, portanto, obviamente não fazia letras de música até chegar a essa instância com o Raul, mas poesia: você já escrevia ou não?
Uma vez alguém escreveu a seguinte frase: “Minha veia poética só fez-me prejudicar”. Então eu decidi nunca mais escrever poesia, apenas livros. Mas os livros eram ilegíveis, não dava nem para ler, eu queria ser incompreendido.
Você tem algum exemplar da Revista 2001?
Boa pergunta. Acho que não [Christina acredita que ainda conservam um exemplar, prometeu procurar. “Mas até achar isso vai ser impossível”, disse Paulo a Christina].
Aquele pseudônimo que você usava, Augusto Figueiredo, a pessoa que Raul foi procurar na redação da 2001, você tomou de onde?
Eu inventei vários nomes falsos. No segundo número, de um total de dois, Raul aparece como colaborador.
O disco voador era uma coisa já incorporada em vocês dois? Porque era uma época em que todos víamos algum disco voador. Essa é a verdade. Era uma fantasia da época.
Até hoje eu sou capaz de afirmar, garantir, que não vi só um, mas vários discos voadores. Por exemplo, eu e Christina, fomos passar 40 dias no deserto. E eu posso jurar que vimos três discos voadores.
Então esses discos voadores não eram alucinações das drogas de juventude? Mas elas liberavam vocês para tanta criatividade musical, ou não?
Liberavam. Eu usava droga e achava tudo magnífico, tudo que eu escrevia era um espetáculo. Tudo passava perfeito, e era tudo uma droga… Então, liberavam o lado mau — não vamos julgar, mas um lado que não tinha nada a ver.
Ou seja, sem drogas, vocês teriam sido os mesmos triunfadores que foram naquele momento?
Acredito que sim.
Ou talvez, sem elas, teriam ido ainda mais longe?
É… Mas, o que matou Raul, e a série mostra muito bem, é a única droga liberada que é o álcool. O álcool matou ele. É impressionante.
Você, na série, aparece sempre como o mais controlado dos dois. Em todos os aspectos, você é um pouco o fio terra dele. Era assim?
Era assim. Eu acho que a série é muito fiel a esse aspecto.
Você chega a cantar em um show, ou cantou em mais de um?
Só no Canecão [extinta casa de shows do Rio de Janeiro].
Mas nunca passou pela sua cabeça ser cantor?
Não! Foi pela cabeça dos executivos da gravadora, que, depois que Raul se afastou, eu deveria me jogar como cantor. Eu disse: “Tá doido?” Não era a minha.
Nesse momento em que Raul fica quatro anos afastado, praticamente sem gravar, nem ser chamado, e a gravadora coloca você a ajudar outros artistas, como Rita Lee, você teve química também? Funcionou? Ou você acha que o carimbo de Raul estava por demais impregnado em você?
O que aconteceu foi que fazer música com os outros cantores me dava dinheiro. Eu precisava desse dinheiro. Mercenário.
Falando em dinheiro, agora com este seriado, você já teve alguma informação se as músicas estão tocando mais? A venda de seus livros aumentou?
Não sei da venda de livros porque a série é muito recente, né? Mas o Roberto Menescal me ligou e disse que as músicas voltaram a tocar. O que significa que, eventualmente, eu vou receber mais dinheiro de execução.
Então, Paulo, você hoje recebe direitos de autor.
É incrível. Mesmo antes da série, eu recebi uma média anual de… agora não posso te jurar. Você tem dois tipos de direitos de autor: execução e venda de discos, tá? Venda de discos não existe mais, acabou. Recebo de execução. Antes da série, eu já recebia bastante. Eu podia viver, se eu quisesse, só de direitos de execução das músicas que fiz com Raul. É um dinheiro significativo até hoje.
Mas da venda de discos você já recebeu bastante, então, durante muitos anos?
Ah, sim, mas hoje em dia não existe mais disco, foi algo que acabou totalmente. Como sumiu o livro impresso, as livrarias e tanta coisa.
Sempre houve uma presença dessas músicas, o “toca Raul”. Agora você vai quadruplicar os ingressos por direitos autorais.
Talvez, não sei.

O irmão de Raul, Plínio, que aparece bastante nas cenas de infância, só reaparece no último capítulo, ele sempre ficou na Bahia. Era alguém que tinha um contato frequente com Raul? Tinha a ver com música? Eles aparecem como muito próximos.
Eu nunca tive muito contato com o irmão do Raul, mas acho que no último capítulo é o Sylvio Passos, o chefe do fã clube dele, não?
Sim, Sylvio Passos aparece como chefe do fã clube. Mas não é o irmão.
Eu era considerado como o cara que desencaminhou o Raul. Como se o Raul não fosse adulto, vacinado e entendesse muito bem da vida. Então as pessoas me culparam. Me culpam até hoje por desencaminhar Raul.
A interpretação que fiz do seriado é que você era justamente o contrário.
Sem dúvida. Mas veja bem. Eu sugeri a ele a fumar e experimentar a primeira maconha. Mas isso não me tirava de ser o fio terra, porque o Raul entrou nessa do álcool, que o seriado mostra muito bem. Ele já bebia. E é muito difícil, muito duro.
Raul sofria mesmo a distância das filhas?
Eu acho que uma das coisas que matou o Raul — isso é uma especulação minha —, foi a ausência da família. No final, ele estava ali, abandonado por todos. Minha esposa, Christina, o viu em Noites Cariocas e viu como xingavam ele; muito agressivos com ele, sabe? Então, ele teve um final de vida muito triste, mas muito triste. Enfim.
Do que sente mais saudade? De Raul ou daquela época com Raul?
De nada. Eu não tenho saudade. Eu acho que vivi ali tudo que podia viver. Saudade está ligada a uma sensação. Como eu vou te definir? Eu vou te dar um exemplo: fiz o Caminho de Santiago em 1986, e nunca tive saudade. Depois fiz por várias vezes, de carro, para levar equipes de televisão e essas coisas todas, mas saudade não tive e nem tenho. No momento em que eu estava fazendo o Caminho de Santiago, estava totalmente lá. Com Raul, mesma coisa. Eu tenho saudade nenhuma, porque sempre segui um princípio na minha vida, que é fazer a coisa com toda a intensidade.
Por que vocês nunca internacionalizaram suas músicas? Se for pelo seriado, dá a impressão que vocês nunca tentaram essa possibilidade de cruzar a fronteira, fazer shows fora.
Música brasileira é música brasileira, tá? A música do Raul não era brasileira. Era muito…
Mas era o que funcionava na época, era isso que a gente queria escutar aqui e no exterior. Aliás, quero que me fale de Elvis Presley, uma inspiração musical no mundo inteiro.
Isso. Mas não para mim. Raul me converteu ao Elvis Presley. A minha inspiração era muito mais os Beatles. Lembro de, quando Elvis morreu, encontrei com Raul e ele disse: “Não toque neste assunto, porque eu estou sofrendo muito”. Ele falou isso. Para mim foi uma morte e pronto. Quando John Lennon morreu, sofri muito.
Faz sentido. Na parceria de vocês, se Raul era Elvis, Paulete, como ele chamava você, era Lennon.
Exatamente…
Mas, Paulo, o palco que tinha Elvis era uma coisa única, especialmente para a época. E isso contagiava.
Você viu uma série sobre o Elvis? Que ele vai decaindo, decaindo.
Há um final trágico semelhante ao de Raul, uma associação de final semelhante. Ambos estão um pouco esquecidos, retornam… e vem a morte. Se Raul não tivesse morrido como morreu, seria o mito que foi depois?
O mito exige a morte. Exige tragédia. Carlos Gardel [cantor argentino morto em 24 de junho de 1935] é um ótimo exemplo: porque o avião caiu, virou o mito. Ele ainda é importante na Argentina?
Sim, é mito. Quem quer ficar na história, tem que morrer jovem, no auge da carreira e tragicamente.
Pelo amor de Deus!
É interessante como o comportamento humano funciona nesse sentido. Você não quer escrever um livro, alguma coisa “Paulo e Raul”, digamos?
Não, hoje nem pensar. Comecei. Já faz muitos anos. Vou para a casa do Raul e no caminho sou abordado dentro do ônibus pela polícia, que pede documentos de todo mundo. E fui escrevendo. Aí Cristina disse: “Não é bom você lançar esse livro”.
Por quê?
Porque é um livro que estimulava um pouco essa coisa da autodestruição. Hoje está tudo bem, o Raul é o mito que ele é. Mas compensou? Não sei.
Esse livro hoje funcionaria com algum retoque que modifique um pouco esse incentivo à autodestruição?
Aí não dá. Ou a gente escreve, ou não escreve. Não dá para suavizar, sabe?
Você, ainda com seu tremendo sucesso como escritor, foi muito generoso quando disse que parte desse sucesso é devido ao Raul, que te ajudou a simplificar. Foi?
Exatamente. Porque eu lembro da primeira versão de “Al Capone”, por exemplo, que
escrevi uma letra que acabava nunca. Raul disse: “O que é isso?” Aí eu perguntei: “O que você quer que eu bote? ‘Hei, Al Capone, vê se te emenda’?” E ele disse: “É isso!” Já “Gîtâ”, por exemplo…
É a que você mais gosta…
Não, eu gosto de tudo que a gente fez, tá? Mas é que uma aposta era essa. Aí, “Gîtâ” era uma letra que a gente fez rapidinho. Demorei uma — não estou longe da verdade, não — meia hora para fazer toda a letra. Aí eu mesmo disse: “Vamos cortar, porque nenhuma gravadora vai se interessar por isso”. E Raul respondeu: “Não corta, deixa”. Aí que está a sabedoria do Raul: saber quando cortar e quando deixar.
Ele tinha o ritmo musical, pois ele primeiro foi produtor musical, então tinha essa coisa dos tempos. Tinha experiência com tudo o que foi produzido no estúdio da CBS para outros artistas, não é?
Exato, mas o sonho dele era ser cantor. E o meu era ser escritor.
Os dois conseguiram.
É, ele virou cantor e eu escritor. Hoje em dia eu estou com 352 milhões de livros vendidos no mundo inteiro. E traduzidos em 89 línguas. Só na Espanha são quatro línguas, basco, catalão, castelhano e galego. Então é sempre almejando ir o mais longe possível, entende?
E seus livros estão em muitos lugares que não te pagam os direitos. Eu lembro do Afeganistão, onde as vendas foram um sucesso inacreditável e nunca cobrou um direito. Você viajou para Cabul para ver isso?
Não tem direitos. E ao contrário, eu fiquei muito orgulhoso de ver as pessoas vendendo meus livros nos sinais de trânsito lá. Porque tudo que um escritor quer é ser lido.
Você tem ciência de que todo mundo está novamente falando de você? Devido ao seriado, no qual você é tão protagonista quanto Raul.
Menescal me falou. Não, não tenho noção.
É impressionante. É a série mais vista no Globoplay e acho que no Brasil é a mais vista de todas.
Gostaram da série?
Sim. Quero assistir novamente. Vi toda ela de uma vez.
Eu também, não consegui parar. E ficando emocionado, essas coisas todas. No final, estava em prantos, cara. É uma coisa muito importante. De maneira que, claro, a única coisa não muito fiel foi quando eu saí da prisão.
Mas, em um seriado de oito capítulos, que só tenha esse detalhe, é uma maravilha. Sinceramente, há seriados que realmente deturpam muito a realidade.
Esse daí deturpou nada. A primeira coisa, quando acabei de ver, comecei
a procurar desesperadamente o telefone do diretor para agradecer a fidelidade que ele teve com a história.
E ele não…
Eu postei uma coisa sobre a série no meu Instagram. Tive 1.400 comentários. Nunca tive tantos. Pelo visto, a coisa tocou mesmo.
E continua tocando, há muita gente que ainda vai vê-la. A propósito, quando vem o seriado da vida de Paulo Coelho?
Ah, cara…
Acho que seria muito interessante.
Você acha? Por quê?
Especialmente depois desse seriado. Você é uma das poucas personalidades brasileiras que tem uma aura que deambula entre o intelectual e o místico, com um talento inclinado à diversidade. Todo mundo conhece você, mas o fato de você não morar no Brasil cria certo enigma. Seria uma série traduzida em 89 línguas. Paulo Coelho é muito mais do que literatura.
Hmmm.

Está preparando um novo livro?
Não, nenhum.
Prefere estar relaxado, tranquilo?
Ao contrário, eu acho que o trabalho faz falta. Se eu começar a fazer coisas é para… É mais para fingir que estou fazendo alguma coisa.
Abraço, Paulo. E obrigado, especialmente porque sei que você não está dando entrevistas.
Deus abençoe você hoje. E até breve.
Fonte: rollingstone.com.br