Em Uma Batalha Após a Outra, seu mais novo filme, Paul Thomas Anderson (Sangue Negro) constrói um épico que combina revolução e drama familiar para capturar o caos político, social e emocional dos Estados Unidos contemporâneos. Entre prisões para imigrantes, a ascensão do nacionalismo branco e a militarização das cidades com vigilância tecnológica e forças policiais fortemente armadas, o longa retrata uma América em crise, marcada pela transformação do medo em política e do militarismo em espetáculo.
Ao dramatizar esse cenário, o filme mostra como a paranoia coletiva e a violência institucional corroem tanto a vida pública quanto os laços familiares, tornando cada relação íntima também um campo de batalha. Nesse contexto, PTA — como o diretor é chamado entre os cinéfilos — investiga como pais e filhos, militantes e militares, revolucionários e burocratas tentam sobreviver, resistir e se reinventar em meio a um sistema que parece sempre engoli-los e moldá-los para que façam com que a América “seja grande de novo”.
A novidade faz jus ao seu título: Uma Batalha Após a Outra é uma sucessão de eventos em cadeia, em que acontecimentos se sucedem, personagens mudam, novas gerações surgem e ideias antigas se esgotam — ou se renovam. A longa duração — de quase três horas — mantém um ritmo alucinado, típico de PTA, que sempre se interessou por tramas densas, cheias de personagens e conflitos interligados, construindo universos nos quais cada elemento se desenvolve dentro de uma lógica bastante natural e própria.
Apesar de se passar em tempos contemporâneos, com celulares — você vai se divertir com o personagem de DiCaprio tentando carregar o dele —, imigração, conflitos sociais e preocupações políticas atuais sempre evidentes, Uma Batalha Após a Outra carrega um fascínio pelos anos 1970.
A forma, a cadência, a adrenalina, a liberdade narrativa, e a coragem de arriscar remetem ao estilo da Nova Hollywood, definido por cineastas que moldaram o cinema norte-americano nas décadas seguintes. Esse eco setentista aparece logo no início, quando o desejo e a política atravessam a relação do Bob Ferguson de Leonardo DiCaprio (O Regresso) e da Perfídia Beverly Hills de Teyana Taylor (Até a Última Gota), dois revolucionários cuja química transforma cada cena em um duelo de paixão e ideologia.
A trama se inicia com a célula revolucionária French 75 declarando guerra ao coronel Steven J. Lockjaw (Sean Penn, Sobre Meninos e Lobos) após libertar imigrantes de um centro de detenção. Esse gesto inaugura o fluxo temporal que PTA acompanha: elipses, mudanças físicas e emocionais, filhos crescendo, ideologias se transformando e ameaças ressurgindo.
O elenco responde ao desafio: DiCaprio equilibra fúria cômica e drama desesperador; Teyana Taylor irradia poder e desejo; Sean Penn alcança um auge como vilão grotesco, misturando bravata e insegurança; Chase Infiniti surge como símbolo de esperança e continuidade, lembrando a descoberta de jovens talentos em trabalhos anteriores de PTA, como Alana Haim em Licorice Pizza.
O ritmo e a ação do filme são vibrantes, ampliando o horizonte narrativo sem perder a intimidade com os personagens. Cada batalha, literal ou simbólica, reforça o peso material da cena, enquanto PTA mantém comédia e tragédia em equilíbrio.
A trilha de Jonny Greenwood acompanha essa energia, conferindo força a momentos de tensão e delírio e reforçando o nervo do cinema setentista filtrado pela urgência contemporânea — a sequência final em uma rodovia sinuosa como uma montanha-russa é de um deleite visual e sonoro quase catártico.

Uma Batalha Após a Outra articula micro e macro de forma precisa. Colocando a fúria representada pelo coronel vivido por Sean Penn e os burocratas diante da paranoia do Bob de DiCaprio, PTA expõe a América atual em seu estado de tensão permanente. A relação entre Bob e sua filha Willa (Infiniti) se insere em um macro de coincidências, encontros e desencontros que moldam o destino de todos, mostrando que a luta não precisa de um herói: outras forças, como o “Harriet Tubman latino” de Benicio Del Toro (O Esquema Fenício), atuam em paralelo. Esta é uma América onde cada um tem a sua própria luta, embora, às vezes, seja possível fazer a revolução juntos.
Há uma ironia em perceber que Bob não resolve nada sozinho. Ele é apenas uma peça em um sistema maior, mas é através de sua relação com Willa que o filme encontra seu coração: a resistência cotidiana, feita de gestos pequenos e coragem íntima, revela-se tão valiosa quanto qualquer vitória grandiosa. Esse olhar desloca a narrativa da lógica do herói clássico e a aproxima de filmes como O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, em que sobreviver — mesmo que uma ideia — já é uma forma de luta e resistência.
Ao fim, o que Paul Thomas Anderson parece recuperar é justamente o espírito dos anos 70, quando o cinema norte-americano traduziu a desconfiança em relação ao Estado após a Guerra do Vietnã e o Caso Watergate, a crise econômica que corroía o sonho americano e a paranoia de uma sociedade marcada por violência, desigualdade e vigilância.
Se naquela época cineastas como Francis Ford Coppola (O Poderoso Chefão), Alan J. Pakula (Todos os Homens do Presidente) e Martin Scorsese (Táxi Driver) criaram filmes que refletiam a instabilidade política e emocional de um país em convulsão, Paul Thomas Anderson retoma essa energia para falar da América de hoje — igualmente atravessada por medo, fúria e paranoias. Seu épico mostra que, meio século depois, as batalhas continuam, apenas com novos rostos, novas armas e as mesmas feridas abertas, sem quaisquer garantias de vitória.
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Angelo Cordeiro é repórter do núcleo de cinema da Editora Perfil, que inclui CineBuzz, Rolling Stone Brasil e Contigo. Formado em Jornalismo pela Universidade São Judas, escreve sobre filmes desde 2014. Paulistano do bairro de Interlagos e fanático por Fórmula 1. Pisciano, mas não acredita em astrologia. São-paulino, pai de pet e cinéfilo obcecado por listas e rankings.
Fonte: rollingstone.com.br