No último dia 21, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, recebeu Cyril Ramaphosa na Casa Branca. Durante o encontro, como foi amplamente divulgado pela imprensa, Trump confrontou o mandatário sul-africano sobre o que chamou de “genocídio branco” no país, com referência à onda de violência contra fazendeiros brancos.
Na ocasião, o americano exibiu ao visitante um vídeo com discursos e entrevistas de Julius Malema, nos quais o líder do partido de extrema-esquerda EFF (Economic Freedom Fighters) dizia coisas como “A revolução exige que em algum momento haja mortes!”. Mostrou também cenas de um comício em que o ex-presidente Jacob Zuma (2009 –2018), outrora co-partidário de Ramaphosa, entoava uma canção com os versos: “Você é um bôer [termo que designa os fazendeiros brancos na África do Sul, descendentes de colonizadores holandeses], nós vamos atirar neles e vocês vão fugir. Atire no bôer”.
Ao ver a notícia, e pensar no cenário sul-africano contemporâneo, lembrei-me imediatamente de um livro sobre a África do Sul que me marcou profundamente. Trata-se de Coração Traidor (My Traitor’s Heart), do jornalista e compositor sul-africano Rian Malan. Descendente de uma influente família sul-africana de origem bôer – cujo antepassado mais famoso é ninguém menos que Daniel François Malan, um dos arquitetos do apartheid –, Malan foi um dos tantos jovens brancos sul-africanos que militaram contra o infame regime segregacionista. Daí que, em Coração Traidor, ele nos conduz por uma jornada pessoal e investigativa das contradições brutais da África do Sul dos anos 1980, um país dilacerado pelo ódio racial.
Mesclando elementos de jornalismo literário, memória pessoal e crítica social – num estilo que remete ao new journalism de Truman Capote –, o livroconsiste numa investigação densa e angustiada sobre a culpa e a identidade branca no contexto do colapso político do apartheid. No caso de Rian Malan, cuja formação intelectual foi moldada por influências progressistas e modismos culturais oriundos da Europa e dos Estados Unidos, a noção de culpa racial – intensificada pelo passado familiar vinculado ao nacionalismo bôer – adquire uma dimensão visceral. Sua opção por uma estrutura narrativa fragmentária, em que se alternam confissões íntimas, comentários políticos e reportagens sobre crimes de brutalidade extrema, expressa o desejo de dar forma literária a uma experiência existencial marcada pela ambivalência e pela inquietação moral.
A trajetória de Malan – da juventude rebelde que rejeita o nacionalismo africâner e foge do serviço militar, passando por um exílio formativo nos Estados Unidos, até seu retorno como jornalista investigativo ao país natal – confere profundidade ao seu olhar sobre as contradições da África do Sul. À medida que relata episódios de violência racial, o autor busca compreender os afetos contraditórios que o atravessam: medo, raiva, empatia, ressentimento e a necessidade de expiação. A pergunta que se impõe como leitmotiv é perturbadora: “É possível manter-se inocente quando se herda o privilégio construído sobre a espoliação alheia?” Esse dilema, ético e ontológico, percorre toda a obra como uma ferida aberta.
O “traidor” do título não remete apenas a um rompimento político, mas a uma cisão interna: Malan percebe-se dividido entre a lealdade cultural à sua origem bôer e a solidariedade moral às vítimas do regime que lhe proporcionou privilégios. A traição, nesse caso, é dupla: contra os valores herdados e contra a pureza ideológica da militância antiapartheid, da qual também se sente alienado. O livro é, nesse sentido, uma crônica do desenraizamento – político, identitário e até metafísico –, e da dificuldade de conciliar a herança com a consciência.
A violência, tema recorrente nas páginas do livro, não é tratada apenas como um fato sociológico ou um dado estatístico. Ela aparece como uma força quase mitológica, uma espécie de maldição que atravessa a história africana, evocando o imaginário sombrio de Joseph Conrad. Os crimes que Malan descreve com uma crueza perturbadora são sintomas de uma sociedade em ruínas, onde a convivência cotidiana foi sequestrada pelo medo e pela desconfiança. Ainda assim, o autor se afasta das leituras simplistas que reduziriam o conflito a uma oposição maniqueísta entre vítimas negras e algozes brancos. A “loucura sul-africana” que ele diagnostica atravessa toda a sociedade: é compartilhada, reproduzida e sofrida por diferentes grupos étnicos e classes sociais.
Ao voltar ao seu país depois de anos nos Estados Unidos, Malan se depara com uma nação em convulsão: a estrutura política do apartheid agoniza, mas a violência racial não apenas persiste como se intensifica. O olhar do jornalista amadurecido já não encontra as certezas que o animavam na juventude. Ao mergulhar na investigação de assassinatos racialmente motivados, ele se confronta com uma realidade mais intrincada do que os esquemas ideológicos permitiriam reconhecer. Há crimes de todas as ordens: negros contra brancos, brancos contra negros, e também entre membros das mesmas comunidades. A violência, aqui, assume contornos quase metafísicos, como se brotasse de uma fonte ancestral, profunda e inescapável.
Esse caráter trágico se expressa de maneira exemplar na história do casal Neil e Creina Alcock, relatada na última parte do livro. Brancos sul-africanos, eles optaram por abandonar a vida urbana para viver entre os zulus pobres da região de Msinga, uma das áreas mais miseráveis e violentas do país – o “coração das trevas” sul-africano. Guiados por ideais humanistas e por um projeto concreto de desenvolvimento rural, criaram uma ONG voltada à autossuficiência alimentar das comunidades locais. Malan os retrata como figuras de expiação, que acreditavam no poder do trabalho, na ação generosa destinada a redimir a história de privilégio racial a que pertenciam. Neil, em particular, é-nos apresentado como um homem consciente da injustiça estrutural que o beneficiava, mas que buscava transcender por meio do engajamento prático e da convivência respeitosa com os irmãos negros.
Contudo, como Malan não se cansa de lembrar, a boa vontade não anula as estruturas: “Neil vivia como se o apartheid não existisse. O problema é que ele existia”. O desfecho trágico do casal – a vida de Neil é tirada pelos mesmos zulus aos quais a dedicou – encapsula a impotência do idealismo diante da dureza da realidade sul-africana. Sua morte simboliza o limite trágico da tentativa de habitar a África como branco sem repetir a lógica da dominação. O sangue que não estava em suas mãos, como sublinha Malan, não o livrou de ser percebido como parte da estrutura opressiva que sua morte expiatória deveria reparar.
Nesse episódio, a “má consciência” branca não se apresenta apenas como um sentimento de culpa retrospectiva, mas como a percepção de que, mesmo quando há disposição para a mudança, há também forças sociais, históricas e simbólicas que impedem a reconciliação. A loucura sul-africana, como a descreve Malan, é a experiência de uma sociedade que perdeu as mediações necessárias para transformar o passado em futuro. Ao evitar moralismos fáceis e encarar com franqueza o horror, seu livro oferece uma visão rara: a de um homem que, em vez de se abrigar no conforto da autocomplacência ou do denuncismo histriônico à moda woke, tenta, com todas as contradições que isso acarreta, pensar a tragédia de sua terra a partir de dentro – e com o coração dividido. Nas emblemáticas palavras do autor: “No fim, todos os homens traem a sua tribo”.
Fonte: Revista Oeste