Como disse lá atrás, quando o papa Francisco faleceu, todo pontificado, sem exceções, tem seus acertos e erros. Não foi diferente com o papa anterior, e não será com Leão XIV, que também acertará e errará. Naquela primeira ocasião, preferi destacar aquilo que o pontificado de Francisco teve de melhor. Agora, que temos um novo pontífice, aponto quatro áreas em que o papa anterior deixou a desejar, e que, em minha opinião, deveriam merecer atenção da parte de Leão XIV.
1. O acordo com a China
Embora eu esteja certo das melhores intenções do papa Francisco quando assinou um acordo secreto com a China para colocar um fim na enorme confusão causada com a existência de duas “Igrejas Católicas” no país – a verdadeira, fiel ao papa, mas clandestina; e a outra, “pirata”, aprovada pelo Partido Comunista, mas cujas ordens também são válidas, embora ilícitas –, os resultados nos mostram que essa nova Ostpolitik não funcionou.
Como o acordo é secreto, não sabemos exatamente o que ele prevê, a não ser pelas informações divulgadas pelo próprio Vaticano. Mas, considerando que a ditadura comunista de Pequim continua nomeando bispos sem a necessária aprovação papal – chegou até a indicar dois bispos enquanto a Sé Apostólica estava vacante! – e segue perseguindo os católicos fiéis a Roma, das duas uma: ou tudo o que está acontecendo é permitido pelo acordo, que seria, então, intrinsecamente ruim; ou a China está violando os termos de forma escancarada e impune, indicando que não há meios de forçar uma parte a cumprir o combinado. Em qualquer dos casos, é um desastre, que inclusive pode ter aniquilado as chances do secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, no conclave recém-concluído.
Leão XIV precisará investir com força na clareza doutrinal, reafirmando as verdades imutáveis – e deixando claro que elas são imutáveis –, e chamando os heterodoxos à razão
Convenhamos: contar com a boa vontade de uma ditadura comunista que tem o objetivo declarado de submeter todas as religiões ao controle do Partido, ainda por cima dando a um poder secular a possibilidade de interferir em uma prerrogativa exclusiva do papa, a de nomear bispos, não tinha como terminar bem. Algo precisa ser feito, mas nem o pessoal do College of Cardinals Report conseguiu encontrar algo que Robert Prevost tenha dito sobre o acordo antes do conclave. O cardeal Joseph Zen, bispo emérito de Hong Kong e talvez o maior crítico do acordo entre a China e a Santa Sé, também não se manifestou sobre as perspectivas para a relação com a China sob Leão XIV. Parolin permanece no cargo de secretário de Estado interinamente; o nome que o novo papa escolher para chefiar a diplomacia vaticana será um forte indicativo do que Leão XIV deseja fazer em relação ao acordo.
2. As restrições à missa tridentina
Já disse aqui, e repito: Traditionis custodes é um documento muito complicado, e até mesmo contraditório, pois começa dizendo que os bispos são os “guardiões da tradição”, para depois negar a esses mesmos bispos a possibilidade de administrar como acharem melhor a possibilidade de acesso à missa tridentina – aquela celebrada segundo o missal de 1962, o último anterior à reforma litúrgica de 1969. Francisco foi severo demais com os tradicionalistas, de uma forma que nem São João Paulo II quis adotar quando o arcebispo Marcel Lefebvre resolveu ordenar quatro outros bispos sem autorização do papa, em um ato cismático.
O missal antigo é um tesouro litúrgico de valor grande demais para ser perdido. Ao mesmo tempo, um novo cavalo de pau, com a liberação indiscriminada da missa tridentina, poderia causar ruído entre os bispos, como me disse dom Fernando Rifan, da Administração Apostólica São João Maria Vianney (cujos padres são autorizados a celebrar exclusivamente a missa tridentina). Uma possibilidade seria voltar ao status de 1988, em que cabia a cada bispo decidir a esse respeito, conhecendo bem a comunidade local, com mecanismos pelos quais os fiéis poderiam pedir à Santa Sé que avaliasse a razoabilidade de uma eventual negativa.
Mas há o outro lado da moeda: ao mesmo tempo em que flexibilizaria as permissões para a celebração do rito tradicional, Leão XIV precisaria falar duro com aqueles que usam a liturgia como cavalo de batalha para desautorizar, desmoralizar ou mesmo negar a validade do Novus Ordo e do Concílio Vaticano II. Uma coisa são os que simplesmente preferem a missa tridentina à missa nova, por razões lícitas, e querem a possibilidade de frequentar essa liturgia em paz; outra coisa são os que questionam a autoridade de um concílio ecumênico, ou afirmam que a Igreja promulgou um rito mau ou prejudicial à fé das pessoas em 1969. Estes são um perigo para aqueles, e por isso precisam ser contidos.
3. A tolerância para com o avanço da heterodoxia dentro da Igreja
Diz-se dos jesuítas que têm um forte amor pelo debate teológico e pela discussão – há relatos segundo os quais o próprio Santo Inácio de Loyola repreendia os jesuítas quando não estavam a discutir. Se isso explica a forma como Francisco lidou com a defesa explícita de ideias heterodoxas dentro da Igreja, eu não sei; mas é fato que defensores de loucuras como o “caminho sinodal alemão” foram repreendidos de forma muito mais branda que os tradicionalistas apegados à missa tridentina, por exemplo.
Supondo que Francisco tenha dado corda a essas coisas esperando um debate que gerasse respostas ortodoxas robustas para demolir os argumentos dos “sinodais alemães” e assemelhados, também não funcionou. O resultado foi o inverso: uma percepção mais generalizada de que mudanças como a ordenação de mulheres, alterações na moral sexual católica ou a relativização da indissolubilidade do matrimônio estariam na mesa, e seriam tão lícitas quanto uma eventual flexibilização do celibato sacerdotal masculino, por exemplo.
Na montagem de seu “gabinete”, é preciso que Leão XIV se cerque de pessoas em quem ele confie, mas também que tenham credenciais impecáveis do ponto de vista doutrinal
Se a unidade de que tanto se falou nas reuniões pré-conclave tem de ser construída com base no Evangelho, como disseram muitos bispos e cardeais, Leão XIV precisará investir com força na clareza doutrinal, reafirmando as verdades imutáveis – e deixando claro que elas são imutáveis –, e chamando os heterodoxos à razão. Assim, ele confirmará seus irmãos na fé, como pediu Jesus a Pedro, e protegerá os pequeninos do escândalo causado por quem defende ideias heterodoxas e até heréticas dentro da Igreja.
4. Nomeações questionáveis em postos-chave
Este item tem ligação direta com o anterior. Se um papa prestigia padres, bispos e cardeais heterodoxos, dando-lhes posições importantes na Cúria Romana ou ao menos emprestando-lhes o prestígio que vem da cátedra papal, fica difícil segurar-lhes a língua quando eles forem defender qualquer coisa oposta à doutrina católica. Mario Grech e Jean-Claude Hollerich, secretário-geral e relator do Sínodo para a Sinodalidade? James Martin, consultor do Dicastério para as Comunicações? Vincenzo Paglia, presidente da Pontifícia Academia para a Vida? Victor Fernández, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé? Aí complica.
Na montagem de seu “gabinete”, é preciso que Leão XIV se cerque de pessoas em quem ele confie, mas também que tenham credenciais impecáveis do ponto de vista doutrinal. Gente que ame a Igreja e as verdades que ela proclama, que esteja convencida de que fora delas não há liberdade e felicidade possíveis para o ser humano, que não tenha medo de defendê-la diante dos incessantes ataques de uma mídia que, a cada troca de papa, renova suas esperanças em uma Igreja que finalmente se conforme ao Zeitgeist. Assim, Leão XIV conseguirá transformar em realidade sua visão da Igreja como “farol que ilumina as noites do mundo”.
Fonte: Revista Oeste