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O STF pode prender Eduardo Bolsonaro, mas não condenar


Quantos dias demora para se condenar alguém em uma democracia? Na “democracia relativa” do governo Lula, em lua de mel com o Supremo Tribunal Federal (STF), depende: se você for um político ou empresário corrupto, como o ex-presidente Fernando Collor, demora 10 anos ou até mais; agora, se tiver o sobrenome Bolsonaro, for de direita ou tiver atuado como agente público na Lava Jato, a condenação é mais rápida: pode acontecer em até 3 dias — e vem pela imprensa.

Foi exatamente isso o que aconteceu com o deputado federal Eduardo Bolsonaro: no domingo, o Procurador-Geral da República (PGR), Paulo Gonet, pediu ao STF a abertura de um inquérito contra Eduardo pelos supostos crimes de coação no curso do processo, obstrução de investigação e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, em razão das denúncias contra o STF que ele tem feito nos Estados Unidos. Na segunda-feira, Alexandre de Moraes já havia instaurado o inquérito, e na terça-feira, cinco ministros do STF já haviam condenado Eduardo publicamente na imprensa.

Sim, você não leu errado: cinco ministros, quase a metade de um tribunal composto por onze juízes. Faltava apenas um para formar maioria. Nessa toada, Moraes já poderia até pedir a deportação de Eduardo Bolsonaro para o cumprimento imediato de pena no Brasil, sem direito a defesa ou recurso — tudo muito democrático. Mas a investigação da PGR contra Eduardo já nasceu morta e terminou antes mesmo de começar — ou assim seria, caso vivêssemos em uma democracia. O caso não resiste a cinco minutos de análise jurídica isenta. Vejamos.

Em primeiro lugar, não há crime algum. A conduta investigada — denunciar violações de direitos humanos e pedir sua punição a quem quer que seja — é um direito. O direito de petição e de denunciar violações de direitos humanos é garantido não apenas pela Constituição, mas também por tratados internacionais, como o Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário. Além disso, Eduardo está pedindo a aplicação da legislação americana aos Estados Unidos, e que isso seja feito nos próprios Estados Unidos. Como a conduta é o exercício de um direito, ela é lícita. Sendo lícita, não pode configurar crime. A penalização criminal é a forma mais pesada de reprimir uma conduta ilícita. Em outras palavras: a ilicitude do comportamento é um pressuposto necessário para que seja considerado criminoso. Por isso, o artigo 23, III, do Código Penal dispõe que não há crime quando o agente pratica o fato “no exercício regular de direito”. Além disso, seria paradoxal considerar crime um pedido para que a lei seja observada, cumprida ou aplicada.

Em segundo lugar, a simples leitura do Código Penal, de como os crimes cogitados pela PGR estão previstos na nossa lei, revela que nenhum deles se relaciona com o caso concreto. O crime de coação no curso do processo, previsto no art. 344 do Código Penal, exige que o ato seja cometido com “violência ou grave ameaça”, o que definitivamente não ocorreu. As sanções, se aplicadas, seriam uma medida administrativa e diplomática do governo americano, que adota outras estratégias quando quer praticar violência e grave ameaça — como o ataque aéreo que matou o general iraniano Qasem Soleimani, em janeiro de 2020, ordenado pelo mesmo Donald Trump que hoje está de volta à Casa Branca. Isso sim é violência e grave ameaça.

Em terceiro lugar, o crime de obstrução à investigação também não está presente, pelo simples fato de que não há investigação em curso contra Bolsonaro no caso do “golpe”. O caso já foi objeto de denúncia pela própria PGR e encontra-se em fase avançada de julgamento. A Polícia Federal deu por encerradas as investigações, afirmando, publicamente, que a investigação sobre a suposta trama golpista foi encerrada. A Lei de Organizações Criminosas fala em obstrução da investigação, e não do processo judicial, e a lei criminal sempre é tomada na sua literalidade, sem espaço para analogia ou extensão “criativa”. Sobre o crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, nem preciso dizer nada – a alegação é simplesmente ridícula.

Se não há crime e o inquérito não tem base jurídica, por que foi instaurado? Política, vingança e retaliação, é claro. O mesmo PGR que hoje investiga Eduardo escreveu, em março deste ano, que as ações de Eduardo nos EUA constituíam exercício do mandato parlamentar e liberdade de expressão. Moraes, o mesmo ministro que agora determinou a abertura do inquérito, concordou com essa avaliação e indeferiu pedido do PT para apreensão do passaporte de Eduardo pelos mesmos fatos. A única coisa que mudou, de lá para cá, foi que Marco Rubio, Secretário de Estado americano, confirmou que sanções contra Moraes estão a caminho.

O filósofo italiano Giorgio Agamben argumenta que nas democracias modernas o “estado de exceção” se tornou a normalidade, uma forma normal de governo, que usa como fundamento a presença de situações excepcionais e de emergência cada vez mais frequentes, sejam reais ou construídas, como o terrorismo, as crises migratórias e a pandemia. Assim, os Estados têm invocado um discurso de proteção para invocar de forma permanente seus poderes de emergência para suspender direitos e fugir às normas constitucionais.

Assim, a população é convencida sobre uma lógica de emergência – contra o golpismo, por exemplo – e aceita, em boa medida, esse controle político, em substituição ao jurídico.  Afasta-se o direito, a proteção legal do cidadão, e se impõe o poder político como forma de controle e domínio sobre o indivíduo, dissolvendo a fronteira entre a democracia e o autoritarismo. A suspensão da lei não acontece à margem do sistema, mas é parte dele e viabiliza a dominação política. O estado de exceção é o autoritarismo camuflado dentro das estruturas democráticas.

É difícil descrever melhor a realidade brasileira, com a peculiaridade de que o estado de exceção é imposto pelo Judiciário. Contudo, há limites que não podem jamais ser ultrapassados. Se Eduardo Bolsonaro retornar ao Brasil, o STF até pode mandar prendê-lo ilegalmente — mas não há como puni-lo pelos crimes que agora lhe imputam. A essa altura, tudo não passa de bravata e ameaça do Supremo para forçá-lo a recuar, baixar as armas e desistir de buscar sanções internacionais contra os ministros. Isso, aliás, foi confirmado pela própria PGR em reportagem publicada por O Globo, segundo a qual o objetivo do inquérito seria apenas impedir que Eduardo continue com suas ações nos EUA.

No fim, então, o inquérito será arquivado porque não tem como prosperar — ou tem? Até que ponto o STF vai esticar o “estado de exceção” que normalizou? Em uma ditadura, a lei é mero detalhe. O que vale mesmo é a vontade do ditador. O que eu mais ouvia, antes de ser cassado, era que seria impossível fazê-lo tecnicamente, porque a lei estava do meu lado. Da mesma forma, era impossível acusar ou condenar Sérgio Moro por uma piada de festa junina envolvendo Gilmar Mendes. Era impossível implementar censura prévia, derrubar perfis de redes sociais, prender gente por mais de ano sem denúncia… Mas aí vieram os excelentíssimos ministros e fizeram tudo acontecer.

A lei não vale nada quando quem manda é a política.



Fonte: Revista Oeste

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