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‘O que mais me impacta na série é a ideia de que ninguém se salva sozinho’


“Vou te contar uma coisa, mas você não pode contar pra ninguém…”

É meio-dia de uma segunda-feira de setembro de 2022, e Ricardo Darín fuma na porta de um cinema em Belgrano, Buenos Aires. Acabam de exibir para a imprensa Argentina, 1985, o filme que, em pouco tempo, vai estremecer as bilheterias — e no qual ele é o grande protagonista. Ele está ansioso com a estreia e, claro, demonstra orgulho, mas, poucos minutos depois, quando pergunto o que vem a seguir e quais são seus próximos passos, algo muda em seu semblante. Um sorriso rápido invade seu rosto e, com um leve movimento de pescoço — como quem checa se ninguém está ouvindo —, ele se aproxima e sussurra no meu ouvido, com os olhos cheios de um otimismo azul-celeste:
“Estou filmando O Eternauta. Não conta pra ninguém. A direção é do Stagnaro. E tá ficando uma loucura…”.

A notícia era impactante. Pouco depois, voltando pra casa, comecei a pensar na ideia — e a primeira coisa que me veio à cabeça foi o enorme desafio que eles teriam pela frente. Filmar O Eternauta podia ser como tentar embrulhar uma girafa: algo impossível. Ou como escalar o Himalaia — algo tão difícil quanto único. Desde sempre, desde que começou a circular o rumor, muitos anos atrás, de que a obra canônica de Héctor Oesterheld poderia ganhar uma adaptação, o comentário que surgia automaticamente era sempre o mesmo: não tinha como não ser uma façanha. Tecnicamente e narrativamente, o projeto teria que ser desesperadamente ambicioso. Mas mais do que isso, O Eternauta era um mito, um texto sagrado que exigia uma única coisa: estar à altura.

Trinta meses depois, sentado no jardim de um bar perto de sua casa, em Palermo, usando jeans (jaqueta e calça) e com o inseparável Marlboro nos lábios, Darín começa a relembrar a longa travessia que ele e toda a equipe enfrentaram até concluir a primeira temporada da série baseada na grande HQ argentina — que estreia no dia 30 de abril na Netflix. Aos 68 anos (“Não sei como isso aconteceu”, ironiza), o grande ator argentino — protagonista de clássicos como Nove Rainhas e O Segredo dos Seus Olhos — segue com a mesma eloquência e magnetismo que o tornaram um ícone.

“Foi uma jornada muito profunda e muito enriquecedora”, dispara. “Porque a essência dessa história é riquíssima. Imagina o que deve ter significado o surgimento desse quadrinho em 1957 — que, por acaso, é o ano em que eu nasci. Ele apareceu e foi entrando no imaginário das pessoas, e acho que, no fundo, é por causa do tema que aborda. Dá pra encontrar várias representações e conexões, mas, na verdade, o que O Eternauta fala é de algo que, pra todos nós que temos um mínimo de sensibilidade, sempre martelou na cabeça: o oposto da ideia de ‘quem cuida do seu próprio quintal, se salva’. Essa história mostra que não há como se salvar sozinho, que é lado a lado, se importando e se preocupando com o que acontece com quem está ao seu lado.

É uma história com a qual eu já sentia conexão — como acho que acontece com grande parte da minha geração —, mas, pra ser sincero, eu nunca tinha lido ela inteira. Sabia do que se tratava. Quando esse projeto surgiu e comecei a entender o caminho que ele queria seguir, trazendo a narrativa pros dias de hoje, fiquei ainda mais empolgado. Quando me encontrei com o Bruno [Stagnaro], com a equipe de produção, e começamos a planejar tudo, ainda fui convidado a participar desde a gênese da ideia. Aí, me joguei de cabeça mesmo”.

RS: É uma produção com características excepcionais pra você. Se não me engano, é a primeira vez que participa de algo que pisa no terreno da ficção científica, no distópico.

RD: Nunca, nunca mesmo. Isso aqui é algo muito grande, muito intenso. A ficção científica me deu um certo frio na barriga — ter que lidar com efeitos especiais pesados, lutar contra monstros, esse tipo de coisa. Mas, quando comecei a conhecer o Bruno, senti muito rapidamente que estávamos bem alinhados, que nossos corações batiam mais ou menos na mesma direção. Ele é um cara genial em muitos aspectos e, como profissional, nem se fala — é daqueles que colocam o pé no barro, que não trabalham no improviso.

RS: É uma história de ficção científica, mas também é uma história muito humana.

RD: Muito humana — quase que a gente nem tem o direito de chamá-la de ficção científica. O que mais me empolgou foi justamente isso: é uma história muito argentina. Você não faz ideia do quanto. Conforme ela vai se desdobrando, vai se identificando claramente com um sentimento que, talvez não seja exatamente nacional, mas que está profundamente ligado às particularidades da argentinidade.

RS: À nossa idiossincrasia.

RD: Exatamente. E essa fusão entre uma história tão argentina — pelos cenários, pela forma de falar, pelo sentimento — somada à ficção científica, cria um coquetel bem diferente. Não quero exagerar, mas é diferente. Estou com muita expectativa sobre como o público vai receber isso. Porque, quando o projeto começou, os fãs mais fanáticos do Eternauta estavam completamente travados, tensos, pensando: “Isso vai ser uma porcaria”. Tô louco pra ver a cara de cada um desses, logo de cara.

RS: Porque é quase uma bandeira sagrada.

RD: Exato. “Não mexe nisso, não encosta porque vai virar uma americanização barata.” Tenho certeza de que pensaram isso — na verdade, escreveram isso nas redes. E, além disso, sempre tem um ou outro imbecil que comentou: “Como assim o Darín vai ser o Juan Salvo, se o Juan Salvo tem 30 anos?”. Se precipitaram. Não faziam ideia de qual era a proposta. E esse é justamente um dos pontos mais importantes desse projeto: trazer a história pros nossos dias. Esses também quero ver.

RS: Como foi o processo de criação do seu personagem?

RD: Foi um trabalho feito lado a lado com o Bruno e com os roteiristas, que fizeram um trabalho espetacular. A gente se reunia muitas vezes lá em casa pra ler os roteiros, os rascunhos, e tentar juntos detectar algo que é bem comum: uma coisa é o que está escrito no papel, outra bem diferente é quando isso passa pelo corpo e pela voz dos atores. Essa primeira etapa foi tão intensa e tão longa que eu aproveitei e sofri na mesma medida. Sofri porque, obviamente, não pude escapar de nada — foi uma entrega total e de altíssima exigência, principalmente pra alguém da minha idade. Era estar o tempo todo sob uma neve inventada.

O Eternauta. Ricardo Darín. (Foto: Sebastián Arpesella/Netflix)

RS: Por que você acha que a história de OEternauta continua atual, quase 70 anos depois de ter sido escrita?

RD: Levando em conta que essa é uma versão inspirada no original, eu diria que o que mais me impacta é o resgate da ideia do coletivo, do grupo. A noção de que ninguém se salva sozinho. E isso, se a gente transporta pra hoje, pra sociedade em que vivemos, é algo que dá muito o que pensar — porque já faz tempo que vivemos num clima onde parece que, se você cuidar só do seu próprio quintal, está tudo certo. E a realidade foi nos mostrando que isso não só não é verdade, como também não é suficiente nem funcional. Esse foco excessivo no individualismo não apenas te afasta dos outros, não apenas te faz parecer indiferente e sem sensibilidade diante do que acontece com quem está ao seu redor, como, do ponto de vista tático e estratégico, também não funciona. Então, o que acontece noEternauta? De certo modo, a história propõe que — por necessidade ou por falta de opção — a única saída possível é estar lado a lado, atento ao que o outro precisa. E essa energia circula, ela vai e volta. Me parece uma metáfora gentil, no mínimo.

RS: E o que você acha que viram em você para interpretar o Juan Salvo?

RD: Além do meu físico de fisiculturista? (risos) Olha, sinceramente, é muito difícil entrar na cabeça de quem conduz um projeto e começa a chamar as pessoas — saber exatamente os motivos por trás de cada escolha. No meu caso, sempre que estive desse lado da responsabilidade — e não é nada fácil —, o que a gente busca nem sempre tem a ver com aparência física. Às vezes o foco está no temperamento, no caráter, na capacidade… algum tipo de conexão que te ofereça, minimamente, uma garantia pra tocar um projeto desse tamanho.

RS: Será que viram algo da sua “argentinidade”?

RD: Sim, provavelmente. Mas também existem outros atores que poderiam representar essa argentinidade com força total. Não sei… talvez seja uma mistura entre ter os pés firmes nesse chão tão argentino e, ao mesmo tempo, a possibilidade de alcançar uma projeção mais ampla — porque os fãs do Eternauta estão espalhados pelo mundo todo, até na Ásia. Acho que a explicação pode estar no fato de que, quando surgiu, OEternauta era uma obra sem pretensão alguma, era como uma garrafa jogada ao mar com uma mensagem dentro. Começou de forma super precária, e aos poucos foi conquistando gente, ganhando interesse, crescendo. Imagino que tenha sido um impacto enorme o surgimento de um quadrinho latino-americano — argentino, especificamente — com esse tipo de história. E esse é outro dos grandes méritos: é nosso. Essa mistura intensa de argentinidade com ficção científica em alto nível.

RS: Agora que você já é um especialista, o que acha que representa hoje a imagem de O Eternauta?

RD: É difícil medir exatamente o que essa figura representa hoje, mas acredito que temos uma grande chance — do jeito que tratamos e trabalhamos essa história — de alcançar um público jovem muito amplo ao longo do caminho, além daqueles que já conhecem O Eternauta há tempos. Principalmente porque essa versão foi atualizada, trazida pros dias de hoje. Acho que vai haver uma identificação imediata com tudo o que acontece, onde acontece e como acontece. Tenho esperança de que o público mais jovem, mesmo sem conhecer a origem dos quadrinhos, se interesse, goste e se conecte com a história. É uma narrativa cheia de suspense, de mistério, de tensão. No fundo, trata da sobrevivência — de como lidamos com um ataque, se é que dá pra chamar assim, vindo de algo que a gente não entende nem controla. O que acontece com a gente? Como reagimos? A gente entra em pânico, se desespera, ou recorre não só aos nossos instintos, mas também às nossas capacidades, ao que conseguimos somar em grupo? E aí volto à ideia do coletivo, do grupo, do estar junto pra tentar superar uma catástrofe.

Há uma entrevista antiga com William Friedkin (diretor de Operação França, entre outros sucessos) em que ele fala sobre os diferentes estilos de atuação. Friedkin conta que trabalhou com Tommy Lee Jones e Benicio del Toro em Caçado (The Hunted, 2003), dois atores com métodos absolutamente opostos. “O Tommy era um cara brilhante. Eu não precisava dizer nada. Só indicava: ‘Você entra por aqui, vai até ali, depois sai por lá’. Aí ele chamava meu assistente, pedia para marcar os pontos no chão. E pronto: filmava. O Del Toro era o completo oposto. ‘Por que eu tenho que entrar por essa porta?’, ele perguntava. ‘O que o meu personagem pensava quando tinha 12 anos?’. Um absurdo”.

RS: Que tipo de ator você é?

RD: Conheço os dois estilos e, hoje em dia, já percebo no ar qual é qual. Tem atores que precisam entender tudo. Acho que todo ator precisa entender, mas alguns captam rápido, enquanto outros precisam de mais detalhes. Eu, sinceramente, posso ser dos dois, depende muito do caso.

RS: Um dos seus personagens mais icônicos, que foi o de AAura, é bem particular, bem diferente do que você vinha fazendo…

RD: Totalmente inexpressivo.

RS: Inescrutável.

RD: Esses caras são perigosos porque você não sabe pra onde eles vão, o que se passa na cabeça deles. Trabalhamos muito com o [diretor Fabián] Bielinsky naquela época. Ficávamos sempre perguntando: como é esse tipo de pessoa? Como é um paciente epiléptico? Pesquisamos bastante. Ele investigou muito mais do que eu, e descobrimos que cada um é diferente. Não existe um padrão, uma metodologia, uma forma de encaixar todos num mesmo perfil.

RS: Falando de atuação, reconhecimento e formas de viver, tem uma frase que está escrita na entrada da quadra central de Wimbledon, logo antes dos jogadores entrarem. É do Rudyard Kipling e diz: “Se você conseguir encontrar triunfo e desastre, trate esses dois impostores da mesma forma”. Como você processa isso? Como lida com a questão do ego?

RD: É exatamente isso. Pessoas que têm trabalhos expostos ao público — artistas, músicos, atletas, funcionários públicos — têm uma luta especial contra o ego. Existe uma tendência forte, meio irracional, mais emocional, de se valorizar. Aquele tapinha nas costas, ouvir “Você é um fenômeno, mestre, craque, fera, máquina”. Quando você começa a receber umas duzentas dessas por dia, algumas pessoas criam um antídoto, outras não. E outras, acho eu, acabam acreditando mesmo. Chegam em casa e pensam que são um fenômeno. Se comportam como se fossem um fenômeno com o parceiro, com os filhos, a família, os amigos. Eu já percebo isso faz tempo. Luto contra isso a vida toda. “Luto” é modo de dizer, porque é algo meu, um problema meu. Não é que eu não goste de elogio, nem que não goste de ouvir “Você mandou muito bem”. Mas daí a acreditar que você é especial…

RS: Lembro que você contou uma frase que seu pai, que também foi ator, dizia — que é o oposto do que estamos falando — algo como: “Não acredite em nada, porque tudo é mentira”.

RD: Sim, sim. Meu pai dizia: “Você tem que saber que não pode acreditar em nada porque nada merece sua crença, mas apesar disso, você acredita, senão perde a melhor parte”. Meu pai tinha essas frases que para mim são uma espécie de Bíblia. Ele também falava sobre o material, a posse: “Você tem que andar leve, não se prenda às coisas materiais”.

RS: Você já contou que, quando seu pai morreu, foi buscar as coisas dele no quarto onde vivia e que ele quase não tinha nada.

RD: Não tinha nada mesmo. Quando ele faleceu, fomos desmontar a casa e não tinha quase nada, ou seja, o que ele dizia era verdade. Ele tinha duas camisas, um par de sapatos, duas calças, uma jaqueta que eu nunca vou esquecer. Era de veludo cotelê, com riscas largas, botões que pareciam de madeira. Esse era o casaco dele. Lembro que abri a gaveta dos talheres e tinha duas colheres, três garfos, duas facas, claro que tinha um saca-rolhas, e só. O que mais valioso que levamos da casa foi uma caixa de sapatos com os escritos dele, cadernos, folhas soltas com coisas dele. Nada mais. Alguns documentos, a carteira de piloto, porque ele era aviador, a carteira de ator, a carteira de motorista. Essas eram as posses dele.

RS: Um boêmio daqueles de antigamente, de uma época que não existe mais.

RD: Sim, porque hoje até os boêmios são obrigados a ter coisas…

RS: Estar registrado na Receita Federal.

RD: Sim, isso nunca foi uma preocupação pra mim, por isso sempre digo que sou um privilegiado, um sortudo. Desde pequeno, sempre teve alguém que me chamou, que me convidou, que me estendeu a mão — até gente que bancou a minha presença, que chegou a brigar com outro dizendo: “Esse cara é um idiota”, só pra me defender. Mas a espera… a espera é traumática. Você começa a duvidar de si mesmo, começa a pensar: “Será que eu não presto? Será que não dou conta? Será que não sirvo pra isso?”. E, na real, não é bem assim. Esse meio é muito duro, muito perverso. Hoje em dia, a gente vê coisas que irritam de verdade: pessoas que viram fenômenos de massa, que movimentam dinheiro e multidões, e que são contratadas pelas marcas só porque têm 14 milhões de seguidores. Aí você pensa: “Tá, mas o que essa pessoa sabe fazer de fato?”. É perverso. Pra quem tem talento, tá esperando uma chance e vive imerso nesse universo onde vê isso acontecer todo dia, deve ser uma bomba na cabeça.

RS: Como você enxerga essa época em que mudou a forma de consumir? Pra gente, antes, ir ao cinema era um programão, uma cerimônia.

RD: Hoje em dia, ir ao cinema virou um sacrifício. As pessoas não estão indo. E como é que vão? Se em casa pagam uma plataforma de streaming e têm à disposição tudo o que quiserem ver, quando quiserem. Vão sair pra quê? Além disso, sair virou sinônimo de gasto — não é só o ingresso, é comer uma pizza, jantar fora… A maioria não tem como bancar isso. E o triste é que estamos esquecendo a diferença brutal que existe entre assistir a um filme em casa e ver no cinema. É outra experiência. De tamanho, de qualidade, de impacto sensorial. Nesse contexto, quem sai fortalecido é o teatro. Porque o teatro não tem substituto.

RS: É por isso que você continua fazendo teatro? Porque virou uma espécie de refúgio?

RD: Sim, o teatro é a resistência. É a trincheira do ator. A gente não vai sair dali nunca.

Ricardo Darín como Juan Salvo em O Eternauta. (Foto: Marcos Ludevid/Netflix)

Buenos Aires, outubro de 2013, Teatro Maipo. Em cartaz: Cenas de um casamento, clássico de Ingmar Bergman, com Ricardo Darín, Valeria Bertuccelli e direção de Norma Aleandro.

Antes do público se acomodar, no saguão, a voz inconfundível de Darín ecoa pelos alto-falantes pedindo, gentilmente, que todos entrem na sala e desliguem seus celulares. Já com a plateia completa e o pano prestes a subir, a voz retorna: insiste que os aparelhos sejam desligados e que, mesmo quem já o fez, confira mais uma vez. “Vocês não sabem o quão insuportavelmente perturbador é estar em cena e ouvir um celular tocar. Muito obrigado”. As luzes se apagam. O pano sobe. A peça começa.

A obra de Bergman não é leve. É densa, inquieta — um melodrama universal. No auge da tensão dramática, quando os protagonistas enfrentam o ponto de virada do relacionamento, tentando decidir se devem ou não se separar, o som de um celular rompe o silêncio, vindo do meio da plateia. Pela precisão do timing — o toque começa segundos após uma pergunta crucial de Bertuccelli —, parece até parte do roteiro. Mas não é.

Estou num camarote e olho direto para a origem do som: ninguém se mexe. O celular continua tocando. O desconforto aumenta. A atmosfera se rompe. Em cena, os únicos dois atores ficam em silêncio. Darín, recostado numa poltrona, fecha os olhos. Bertuccelli olha para o chão. O telefone toca por mais de 15 segundos — uma eternidade. Ninguém desliga. O clima é insuportável.

Finalmente, o toque cessa. Então Darín, o mesmo que havia nos pedido para desligarmos os celulares, dá um sobressalto teatral, como quem acorda de um sonho, e solta: “Putz, dormi e sonhei que tinha um celular tocando… ainda bem que era só sonho”. A plateia explode em gargalhadas — uma mistura de alívio e catarse.

Meia hora depois, a convite do ator, desço aos camarins para cumprimentá-lo. Assim que entro no porão apertado, cheio de cenários e adereços, vejo Darín vindo em minha direção, sem camisa, carregando-a no ombro. Atrás dele, vêm Bertuccelli e Aleandro. O rosto de Darín está transtornado. Nunca o vi assim. “Filhos da puta… são uns filhos da puta…” — repete.

Ele não está com raiva, mas claramente afetado. O incidente não passou batido. Aleandro e Bertuccelli o acompanham em silêncio. Sem nem me cumprimentar, olha nos meus olhos e desabafa: “Tava difícil hoje. Tinha uma energia estranha. Mas vou te dizer: depois daquela piada, tudo fluiu. Virou”. Aleandro concorda com a cabeça: “Você foi genial. Aquilo salvou tudo”.

RS: Você se lembra disso?

RD: Sim, claro. Situações assim, tenho aos montes. É algo que acontece muito. Vejo direto as telinhas que se acendem de repente. Às vezes, eu perco a paciência. Já parei apresentações por causa disso.

RS: E o que você diz para as pessoas?

RD: Falo: “Olha, tem alguma coisa que você não entendeu e que está nos fazendo mal, não só a nós aqui no palco, mas a todos os outros também”. O público adora um escracho, pede sangue. Mas com o tempo você percebe que podem existir mil motivos para a pessoa não ter desligado o celular, então tento não ser grosso. Só que, sim, fico mal. Porque irrita de verdade.

Tem uma que eu faço bastante: finjo que o celular que está tocando é o meu, começo a me apalpar, como se estivesse procurando o aparelho. Todo mundo entende o recado. Essa sempre funciona. Também tem aquele caso do celular que toca e a pessoa desliga na hora — escapou, tudo bem, não é o fim do mundo, não merece guilhotina.

Por exemplo, uma das mais recentes aconteceu na temporada passada, em Barcelona. Última noite da peça. A função correu linda, chega a cena final, um momento pequeno, íntimo, quando os personagens se reencontram, trocam um beijo, dizem algo bonito… De repente, vejo uma movimentação estranha na plateia: um cara caído no corredor, dez pessoas em volta, acendem as luzes da sala — o homem estava tendo um infarto.

A gente ficou paralisado. A Andrea Pietra, minha parceira de cena, me perguntou: “E agora, o que a gente faz?” — Isso é algo único do teatro: é perigoso, tudo pode acontecer, é vertiginoso. Chamamos uma ambulância, a função ficou parada uns quinze minutos. Levaram o homem. Por sorte, depois nos contaram que ele foi atendido a tempo, ficou bem, se salvou.

O engraçado é que, quando fomos retomar a peça, a Negra me perguntou: “Onde a gente recomeça?” E eu puxei de volta a cena que tinha sido interrompida. Em certo momento, ela solta: “Isso me dá um pouco de medo”. E eu, que sou um idiota, respondo: “Medo? Medo foi o que a gente acabou de passar agora!”

Porque é isso, foi uma experiência coletiva. Não aconteceu só conosco, atores. Aconteceu com todos ali presentes. Todos ficamos preocupados, todos ficamos assustados. Isso é o teatro: debaixo daquele teto, estamos todos vivendo a mesma coisa.

RS: Como você continua encontrando prazer em fazer a mesma peça tantas noites seguidas? Como funciona isso?

RD: É que nunca é igual. Sim, claro, tem repetição, o texto é o mesmo. Mas a gente nunca fala igual, sempre acontece algo diferente, você está num estado de espírito diferente. Já me aconteceram coisas bem marcantes… Às vezes, sinceramente, não dá vontade de ir. Você pensa: “Puta que pariu, tenho que ir agora, tá chovendo, um frio do caramba, tenho que ir até lá andando…” — e olha que eu nem tenho carro, principalmente na Espanha, faço tudo a pé.

Você chega, começa a entrar nas exigências do personagem, coloca o figurino, encontra a equipe, conversa com um e com outro, começa a tocar a música… E aí pisa no palco. E ali, naquele instante, é como se fosse uma salvação — uma salvação de você mesmo. São duas horas em que você se esquece de quem é. Já fiz apresentações com febre alta, e só fui lembrar que estava doente depois que acabou. É uma sensação muito estranha.

RS: É melhor que jogar tênis? [Darín é fanático por tênis. De fato, assim que terminou a entrevista, abriu um app no celular para ver o resultado de Francisco Cerúndolo, que jogava naquela tarde]

RD: Sim, porque ali você está jogando de ser outro. É um nível de foco muito alto, como no tênis, no esqui, em qualquer esporte. Você tem um objetivo, está pensando só naquilo e não sobra muito espaço mental pra pensar nos seus problemas. Então você se salva de si mesmo por um tempo, se desliga dos seus pepinos. É uma salvação — e não se parece com mais nada.

Além disso, tenho a sorte de, nos últimos anos, estar dividindo o palco com a Negra Pietra, que é uma usina de energia constante. Acho que a gente ainda faz essa peça por causa dela, não por mim. Porque, além de ser uma grande atriz, é alguém que tem gratidão pela vida.

RS: Essa peça, em particular, fala sobre um tema universal.

RD: Sim. A identificação é imediata. É uma peça onde o Bergman se permitiu dizer coisas que normalmente ninguém diz. Meu personagem, em certo momento, chega a dizer que detesta as filhas. Ninguém fala isso em voz alta. E ele explica por quê — e, racionalmente, faz sentido: diz que elas são egoístas, mesquinhas, briguentas, ingratas. Quantas pessoas não pensam isso, mas nem se permitem formular esse pensamento? Ele teve a coragem de colocar isso em cena. É algo que incomoda. Sempre digo: essa não é uma comédia — é uma “incomédia”. É desconfortável. E eu vejo o que acontece na plateia: os casais, as reações, o silêncio… mais até do que os comentários que escuto na saída.

RS: É perturbadora.

RD: Lembro de uma vez em que o Diego [Maradona] foi assistir à peça, numa dessas relações que ele teve depois de se separar da Claudia. Depois ele desceu até os camarins e me disse [Darín imita a voz rouca e o sotaque característico de Maradona]: “Por que você não me avisou que era sobre isso, irmão?”. Hahaha. A situação mexeu com ele. Pegou ele no contrapé.

RS: Que encontro, né? Bergman com Maradona…

RD: Nem me fale. Bergman já era um negócio de outro mundo — e o Diego, então, nem se fala.

Foto: Sebastián Arpesella/Netflix

No mesmo dia e quase no mesmo horário da entrevista com Darín, acontecia nos arredores do Congresso uma marcha de aposentados, apoiada por torcedores de diversos clubes, que terminou em uma repressão brutal e com o fotógrafo Pablo Grillo gravemente ferido. O clima nas ruas não era dos melhores.

Em outra ocasião, uma declaração sua sobre as bolsas da Cristina [Kirchner] gerou um rebuliço midiático que lhe trouxe muita ansiedade — metade do país se voltou contra ele, algo até então impensável. Ainda que hoje pese mais as palavras, Darín não se esquiva da realidade conturbada que atravessa o país.

RS: Como você enxerga a situação social?

RD: Eu não sou otimista por natureza. Não acho que as coisas vão melhorar — e não só aqui, em lugar nenhum do mundo. Os sinais que recebo não vêm de pessoas gentis, amorosas, sensíveis, que estejam lutando pelo bem comum. Acho que estamos interpretando mal as situações. Não sou otimista, mas tento ser positivo. Não gosto de ficar dramatizando, dizendo que está tudo uma merda. Acho que temos um direito — e um dever — de tentar resgatar o que é possível dentro do contexto, da conjuntura atual. As pessoas estão ouvindo, estão prestando atenção. Me parece que estamos num momento em que precisamos de encorajamento. Já saímos de outras crises — por que não sairíamos dessa? Vamos sair como povo. Mas tenho minhas dúvidas também, porque a gente costuma tropeçar na mesma pedra, como se não aprendêssemos nunca. Alguém disse uma vez que somos um povo adolescente — e essa frase ficou ecoando na minha cabeça. Será que a gente não está lendo as coordenadas de forma correta?

RS: Quando fala em tropeçar na mesma pedra, você se refere a ver padrões que se repetem desde os anos 90?

RD: Claro. Mas, no fundo, o que tenho é uma espécie de desencanto, não só com o comportamento coletivo, mas com a classe política. Parece que o serviço público deixou de ser algo honroso — agora está a serviço de outras coisas. Talvez eu seja ingênuo, mas acredito que exista gente que acorda de manhã, que ocupa cargos públicos e realmente sai pra batalha tentando melhorar a vida das pessoas. Mas acho que são poucos. Porque a sensação que dá é que a função pública virou apego ao poder. Estão agarrados ali, tentando ver como se ajeitam. Não gosto dessas sinalizações, e acho que o povo também percebe. A necessidade está escancarada, cada vez maior. Eu choro, vejo famílias morando na rua e fico fora de mim.

RS: Muita gente revirando o lixo.

RD: É inacreditável. Você se pergunta: “Como pode ser, nesse país?”. A gente tem potencial para gerar riqueza para 400 milhões de pessoas — e somos 45 milhões. Como pode ter gente revirando lixo? De onde vem isso? Estamos em queda livre há muito tempo. Como se sai disso? Não quero ser negativo, mas sinceramente não sei como as pessoas estão conseguindo hoje em dia ir até uma farmácia. Eu mesmo vou comprar alguma coisa e olho para o lado: como essa pessoa vai pagar? Com o quê? Como alguém consegue pagar por remédios, com o preço que estão? Como um cara com dois filhos alimenta a família? Me explica. Eu quero que alguém me explique.

RS: É incompreensível.

RD: E é porque estamos acostumados com a bota na cabeça. Com esse discurso de “vamos ver”, “vai melhorar”. É aquilo que te dizia antes: os fatores macroeconômicos, um indicador positivo, o Merval, o que quiser. Mas quando isso chega na gente? Quando que a população sente isso? A verdade é que eu não sei.

RS: Bom, vamos falar de coisas mais bonitas. Você sente falta do Diego?

[Darín demora alguns segundos para responder. Por um breve instante, olha para um ponto indefinido. Parece que uma cavalcade de emoções dispara dentro dele. Seus olhos se umedecem].

RD: Com ele, acontece comigo uma coisa que acontece com poucas pessoas. Aconteceu com o Bielinsky, com alguns familiares, amigos, com poucas pessoas mesmo. Eu não consigo me dar conta de que ele não está mais. Me recuso a aceitar. Tenho todos os números anotados aqui no celular. Tenho o do Bielinsky anotado e não consigo apagar. É uma bobagem, mas me parece que não posso fazer isso. É como virar uma página. Eu vivi tanta coisa com ele. Não só eu, a Flor, minha mulher, ele adorava ela e as crianças. Vivemos uma grande parte da nossa vida juntos, família com família. As crianças iam para a mesma escola, a gente se via todo dia, íamos jogar tênis, jogar futebol. Muito mais longe no tempo, também éramos muito próximos. Vivi tantas coisas com ele que, às vezes, não lembro com frequência, mas as tenho muito claras. Tenho pedaços dele espalhados por todo o caminho. Sim, eu sinto falta. A última vez que o vi, ele estava no círculo central do campo do Chelsea, com um advogado, amigo dos dois, com quem eu tinha falado muito sobre ele. Ele tinha estado aqui em Buenos Aires e esse advogado me pediu para nos encontrarmos porque queríamos ‘resgatá-lo’, entre aspas.

RS: Uma das tantas vezes que você tentou, não foi?

RD: Sim, uma das tantas vezes. Ele tinha acabado de me xingar porque encheram a cabeça dele e ele dizia que eu tinha comprado alguns apartamentos em Miami. Ele estava brigado com a Claudia naquela época. Não só era mentira isso dos apartamentos, mas eu nem conseguia imaginar de onde isso tinha saído. Eu nem sabia onde ficava Miami. Ele dizia: “O cômico tal, traidor”. Me chamava de cômico, uma dessas coisas que pegavam nele. Pelo que parece, ele encontrou esse cara em Londres e, por algum motivo, acabaram no círculo central do campo do Chelsea, vazio. Imagina a cena. O que aconteceu é que esse homem, que tinha meu número, fez um FaceTime. Colocou uma chamada de vídeo. E ele, chorando, me disse: “Cômico, tenho que te pedir desculpas”. Os olhos cheios de lágrimas. Pelo que parece, esse cara contou para ele algumas coisas que tínhamos falado, então ele voltou, como acontecia muitas vezes, para me ligar e pedir perdão.

Esta matéria foi originalmente publicada no dia 3 de abril de 2025 na Rolling Stone Argentina e pode ser conferida aqui.

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Fonte: rollingstone.com.br

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