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O dever de toda boa aula: ser chata e entediante


Sou professor de ensino médio há mais de vinte anos. Tempo suficiente para ter assistido à chegada do celular na sala de aula. Primeiro como novidade, depois como ruído, hoje como vício. Antes dos aplicativos, antes dos fones, antes da hiperconexão, havia uma presença silenciosa que marcava o tempo da escola: o tédio.

Sim, havia tédio. E o tédio era formativo. Adolescente precisa de tédio. Tédio é o intervalo entre o estímulo e o sentido. É no tédio que o olhar se perde no teto, que se desenha no canto do caderno, que o pensamento divaga até tropeçar numa dúvida, numa pergunta. Era no tédio que se descobria que aprender não é prazer imediato. Compreender é fricção entre o que se sabe e o que não se entende. Ou seja, esforço. Tão chato quanto cansativo.

Na semana passada, participei do Fronteiras do Pensamento, em São Paulo. Fui ouvir Jonathan Haidt, psicólogo social americano e autor de A Geração Ansiosa: como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais. Sua tese é simples, mas devastadora: a infância foi radicalmente reconfigurada pela cultura digital. Deixou de ser tempo de descobertas no mundo físico para se tornar um estágio de exposição contínua ao mundo virtual.

Haidt chama esse processo de “A Grande Reconfiguração” — a ascensão da infância baseada no celular. A partir de 2010, a curva de ansiedade e depressão entre adolescentes — especialmente meninas — dispara. Segundo ele, o problema está no ambiente em que os jovens passaram a crescer: um mundo real superprotegido, onde nada pode dar errado, e um mundo digital sem proteção alguma, onde tudo pode dar errado o tempo inteiro. Haidt apresenta dados sólidos que mostram que não se trata de mera correlação. Ele demonstra que a explosão dos transtornos mentais coincide com mudanças concretas no modo de vida digital e que os piores indicadores aparecem justamente nas populações com maior exposição às redes. Há um nexo causal e o argumento dele é muito convincente.

De qualquer forma, a infância baseada no celular transformou as relações sociais. Os pais restringiram a liberdade na rua, mas abriram mão de qualquer limite nas telas. A criança perdeu o corpo e ganhou um perfil. Perdeu a experiência direta da vida social e ganhou o feed. E, nesse processo — e aqui me intrometo — perdeu também o direito de se entediar.

A lógica da hiperconectividade não tolera silêncio, nem demora, nem vazio. Cada segundo sem estímulo é tratado como falha. A escola, então, passou a ser medida por esse padrão. Foi assim que a ideia da “aula agradável” se impôs. Lembro de uma mãe me dizendo: “Professor, minha filha precisa de aulas mais divertidas, mais leves.” Ora, isso é um sintoma. Um erro de diagnóstico sobre o que é, afinal, uma sala de aula.

Com todo respeito a quem pensa o contrário, aula não é entretenimento. Saber não é algoritmo. A inspiração não vem de agradar, mas de provocar. De ferir suavemente a inteligência. De deixar uma pergunta corroendo em silêncio. Aula boa é a que exige do aluno aquilo que ele ainda não sabe que tem: atenção. E isso, em outras palavras, exige esforço — e esforço, sejamos honestos, cansa.

De forma categórica, Haidt propõe o mínimo: tirar os celulares das escolas. Não por nostalgia ou moralismo, mas por uma questão de saúde pública. Ele elogiou, inclusive, a legislação brasileira sobre o tema — que, embora pouco aplicada, reconhece o problema com clareza. Aqui, mantenho alguma distância. Não creio que a proibição, por si só, resolva o desequilíbrio. Mas reconheço o ponto: onde o celular sai, o sono melhora, o rendimento aumenta, a ansiedade recua. Onde há menos tela, há mais gente. E mais tédio.

Por isso insisto. O que está em jogo é ainda mais fundamental: precisamos devolver o tédio à escola. O tédio é o que antecede o pensamento. É ele que prepara o terreno da curiosidade. O filósofo Martin Heidegger, em Os Problemas Fundamentais da Metafísica, dedicou longas páginas ao tédio como experiência decisiva na busca de sentido. Quando nada nos distrai, algo mais essencial pode se mostrar. O tédio inquieta a alma. Sem ele, tudo vira estímulo passageiro — e nada permanece.

A escola tem o dever de frustrar. De não se adequar ao ritmo da tela. De exigir espera. De ensinar que o pensamento precisa de tempo, de cansaço, de esforço. Nenhuma ideia se fixa sem lentidão. Ensinar, afinal, é desacelerar o mundo. É repetir. É sustentar o silêncio até que a palavra venha. O professor não pode ser um animador de plateia. Ele é a pausa inquietante entre o ruído e o sentido. O intervalo entre o mundo e a alegria genuína de aprender. E o sentido do conhecimento só aparece quando aceitamos o vazio que o precede.

Então, mais do que nunca, antes de resistir ao celular, é preciso resistir à pedagogia do agrado. Resistir a essa aversão patológica à frustração. E essa resistência começa com algo simples: devolver à escola o direito de ser chata, lenta, silenciosa — e, por isso mesmo, fecunda.



Fonte: Revista Oeste

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