“Ninguém é obrigado a tomar parte nas crises espirituais da sociedade, ao contrário, todos são obrigados a evitar a loucura e viver sua vida em ordem.” (Eric Voegelin)
Estou de volta a Ouro Preto. Mas, dessa vez, não para, propriamente, me maravilhar com o que há de melhor nesse país de Aleijadinho e Mestre Athaíde, mas para trabalhar num projeto especialíssimo, que divulgarei em breve. Por isso, passarei duas semanas num (quase) total isolamento, nessa terra em que minha alma encontra paz. Porém, ao levantar a cabeça para ver o que estava acontecendo fora de meu mundo particular, vi que o Brasil deu um nó em si próprio e nossas instituições parecem ter entrado num modo esquizofrênico a fim de enlouquecer a população.
No último dia 29 de abril, o MC Poze do Rodo, 26 anos, foi preso pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, acusado de apologia ao crime e envolvimento com o tráfico de drogas. A polícia alegou que Poze realiza seus shows em áreas exclusivamente dominadas pelo Comando Vermelho (CV), o que possibilitaria venda de drogas, armas e lavagem de dinheiro, e afirma que suas músicas fazem apologia da facção criminosa. Porém, no dia 2 de junho, por determinação do desembargador Peterson Barroso Simão, da 5.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio, Poze foi solto.
A decisão do desembargador é um primor de ativismo político. Dentre outras coisas, ele alegou “que aqueles que levam fortuna do INSS contra idosos ficam tranquilos por nada acontecer e, ao mesmo tempo, prende-se um jovem que trabalha cantando e ganhando seu pão de cada dia, podendo responder à investigação e processo criminal em liberdade. Tais extremos não combinam”. Uma comparação dessas é não só descabida, mas toma partido e sai em defesa do funkeiro, afirmando, contra a investigação da polícia, que se trata apenas de “um jovem que trabalha cantando e ganhando seu pão de cada dia”.
É curioso ver um país que mal saiu de um regime ditatorial, que teve praticamente duas décadas inteiras de “tudo é permitido”, e que de repente cai novamente nesse pendor censório uma geração depois
Mas o mesmo poderia ser dito de outra decisão recente de nosso tão ilibado sistema de Justiça. O humorista Léo Lins acaba de ser condenado à prisão por conteúdos considerados discriminatórios em seu show “Perturbador”, divulgado no YouTube. A decisão, além de prever prisão de oito anos, três meses e nove dias, em regime fechado, também determina que o humorista pague uma multa de cerca de R$ 1,5 milhão, além de uma indenização de R$ 303,6 mil por danos morais coletivos. Ou seja, enquanto “aqueles que levam fortuna do INSS contra idosos ficam tranquilos por nada acontecer, ao mesmo tempo, prende-se um jovem que trabalha contando piadas e ganhando seu pão de cada dia”.
Como sempre, o Brasil, país de vocação autoritária que vive num estado perpétuo de tensões sociais estúpidas, voltou a discutir os “limites do humor” – inclusive já tratei disso aqui, nesta Gazeta do Povo. Mas agora está confuso com a similaridade entre os dois casos, que versam, guardadas as devidas proporções e singularidades, sobre liberdade de expressão. Léo Lins foi condenado por contar piadas; Poze do Rodo foi preso por cantar. Mas calma lá!
A condenação de Léo Lins é pautada em flagrante subjetividade, em argumentos que evocam “danos morais coletivos”, pois, evidentemente, não são todas as pessoas que pertencem às “minorias” ou grupos sociais sobre os quais Lins faz piada que se sentiram ofendidas com seu show. Eu sou negro e não ligo – mesmo porque nem vi o show; não gosto desse tipo de piada e não vou a shows de stand-up, mas não ligo. E quem se sente ofendido deveria fazer o mesmo, pois censurar é sempre conceder poder a alguém que pode silenciá-lo no momento seguinte.
Mas é curioso ver um país que mal saiu de um regime ditatorial, que teve praticamente duas décadas inteiras de “tudo é permitido” (os anos de TV Pirata e Mamonas Assassinas, por exemplo), e que de repente cai novamente nesse pendor censório uma geração depois. E pior: com a anuência de muitos dos que adoram falar contra a ditadura e os fascismos imaginários atuais; os mesmos que querem, igualmente, censurar as redes sociais. Como explicar isso para um ser humano normal?
Já o caso Poze do Rodo envolve detalhes que não podem ser esquecidos. Em suas músicas ele tece loas a uma facção criminosa perigosíssima, ao mesmo tempo em que ameaça rivais e incita conflitos. Na letra de suas músicas, isso é ficção? Talvez, se não levarmos em consideração que o crime organizado é responsável pelo assassinato de dezenas de milhares de jovens periféricos – que, inclusive, moram nas favelas em que Poze realiza seus shows – todos os anos. Segundo o mais recente Atlas da Violência, em 2022, 49,2% dos 46,4 mil homicídios registrados no país tiveram como vítimas pessoas entre 15 e 29 anos, a maioria esmagadora são jovens negros.
Se o jovem já é um faccionado, as letras de Poze soam como grito de guerra – o que explica, em parte, a grande quantidade de jovens armados com fuzis em seus shows
De acordo com Samira Bueno, uma das coordenadoras do Atlas e diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública – ONG, diga-se, que recebe uma dinheirama de George Soros –, em reportagem da CNN Brasil, “são eles que são a mão de obra (do crime organizado). Especialmente jovens periféricos, pretos e pardos, que são aliciados o tempo todo pelo mundo do crime, evadem da escola muito cedo e não veem oportunidades no mercado de trabalho”. Ou seja, a ficção de Poze alicia e mata jovens periféricos a rodo.
Quando numa de suas letras, de título Fala que a tropa é Comando Vermelho, ele diz “respeita o CV / que só tem bandido brabo / só menor de guerra”, esses menó estão nas estatísticas citadas por aqueles que agora estão defendendo Poze, mas chamam de “genocídio do jovem negro” o que ele prega. Se o jovem já é um faccionado, as letras de Poze soam como grito de guerra – o que explica, em parte, a grande quantidade de jovens armados com fuzis em seus shows.
Não posso dizer que não tenho medo de generalizações; de que a cultura de periferia, o hip hop, o próprio funk sejam sumariamente criminalizados em nome da moral e dos bons costumes. Fazer distinções é um trabalho difícil quando a sanha autoritária e persecutória está à solta, prendendo e condenando todos os que não se enquadram no espírito tenebroso desses tempos. Que tenhamos discernimento para que nosso senso de justiça não seja seletivo.
Fonte: Revista Oeste