Pai com filho na escola não tem paz, precisa sempre estar de olho no material didático. De tudo que pode aparecer nos livros, obviamente tem coisa muito pior que informação falsa sobre ciência e fé – doutrinação política, educação sexual permissiva etc. Mas, como esta é justamente uma coluna sobre ciência e religião, conto aqui sobre o dia em que encontramos a lenda da “Terra plana” no livro de Ciências do meu filho mais velho.
O que estava no livro
Minha esposa estava revisando os conteúdos da prova quando encontrou umas afirmações estranhas no Akpalô Ciências 3.º ano, edição de 2019, página 21. Ela me chamou, mostrou e eu confirmei que algo ali não soava nada bem:
“Até cerca de 500 anos atrás, pouco se sabia do nosso planeta. Muitos povos acreditavam que a Terra era plana como uma mesa. Os navegantes temiam chegar à borda da Terra, como mostra a figura ao lado, e cair no ‘espaço negro’. Foi observando que o Sol e a Lua eram arredondados que os povos antigos passaram a suspeitar que a Terra também fosse arredondada. Mais tarde, a ideia foi reforçada porque os navios ‘sumiam’ no horizonte, mas acabavam voltando ao seu ponto de partida.”
Pelo menos desde a Grécia Antiga se sabia que a Terra era esférica. Mas, ao contrário do que diz a lenda, esse conhecimento não se perdeu na Idade Média
Vá lá: o livro não diz explicitamente que os cristãos medievais acreditavam em uma Terra plana. Mas esse negócio de “até cerca de 500 anos atrás, pouco se sabia do nosso planeta” remete diretamente ao tempo das Grandes Navegações, que é a época-alvo da lenda segundo a qual Cristóvão Colombo teria mostrado à ignorante cristandade medieval que o planeta era esférico. O texto deixa a porta aberta para a fake history.
A história verdadeira sobre os cristãos da Idade Média e a Terra plana
Pelo menos desde a Grécia Antiga se sabia que a Terra era esférica; Eratóstenes tinha até medido, com bastante precisão, a circunferência do planeta. Mas, ao contrário do que diz a lenda, esse conhecimento não se perdeu na Idade Média. Santo Agostinho afirmava a Terra esférica no Livro XVI d’A Cidade de Deus (século 5.º); São Tomás de Aquino fez o mesmo na Suma Teológica (século 13; I,q1,a1). Até houve autores cristãos terraplanistas, como Cosme Indicopleustes e Lactâncio, mas eles eram totalmente marginais e nunca foram amplamente seguidos a esse respeito.
Onde Colombo entra na história? De fato, sua ideia de navegar sempre para o oeste até chegar à Ásia foi recebida com ceticismo, mas não porque as pessoas achassem que a Terra fosse plana. Acontece que, por alguma informação errada ou confusão com as unidades de medida, Colombo achava que o planeta era muito menor do que realmente era. Os conselheiros de Fernando de Aragão e Isabel de Castela, cientes disso, desaconselharam a expedição argumentando que a frota pereceria muito antes de chegar ao Japão, o que era verdade. Os monarcas espanhóis enrolaram o genovês por alguns anos, mas finalmente resolveram bancá-lo; para a sorte de todos, havia uma América no meio do caminho.
O que eu fiz – e o que você deveria fazer na mesma situação
Quando se encontra fake history sobre ciência e fé no material didático do filho, a primeira coisa a se fazer é jamais pressupor má-fé; a não ser que você tenha visto algum tipo de afirmação preconceituosa de autores de livros ou diretores de escola em relação à religião, é quase 100% certo que a informação falsa foi parar ali por desconhecimento mesmo. As lendas sobre ciência e religião – Terra plana, caso Galileu, proibição de dissecações etc. – ainda são muito, mas muito prevalentes na sociedade. Quem escreve um livro didático tem de ser criterioso, conferir tudo, mas tartarugas escapam. No meu caso específico, ainda há o detalhe de se tratar de uma imprecisão histórica num livro de Ciências.
Então, procurei os envolvidos para explicar, com toda a educação do mundo, que havia um erro (ou, na melhor das hipóteses, uma ambiguidade) que precisava de correção. A diretora da escola me respondeu agradecendo pelo aviso, e afirmando: “vamos levar sua observação à equipe pedagógica, para que o conteúdo possa ser revisto e trabalhado em sala de aula com os esclarecimentos adequados – sempre com uma linguagem acessível ao nível do 3.º ano”. Entrei em contato com a Editora do Brasil por e-mail e pelo WhatsApp, e recebi uma resposta agradecendo a “análise criteriosa do conteúdo”, afirmando que “você tem razão ao destacar que os estudiosos da Antiguidade e os grandes navegadores da Era Moderna já reconheciam a esfericidade da Terra”, e que “seu comentário foi muito bem-vindo e será considerado nas próximas atualizações da obra”. Por fim, encontrei os perfis das duas autoras no Facebook e enviei mensagem privada a ambas, mas não tive resposta – o espaço continua aberto.
Em resumo: nesses casos, é preciso avisar, sim, especialmente o pessoal da escola, para que não passe a fake history adiante, sempre com educação. Havendo chance, procure também a editora e os autores do livro. Sugira fontes como o essencial Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre ciência e religião. E assim, aos pouquinhos, vamos eliminando as lendas que ganharam terreno no último século e meio, garantindo que as próximas levas de estudantes aprenderão o certo, e restaurando a verdade pra valer.
Quando se encontra fake history sobre ciência e fé no material didático do filho, a primeira coisa a se fazer é jamais pressupor má-fé
E o papa matemático, hein?
Um milênio depois de Silvestre II, voltamos a ter um papa matemático! Robert Prevost, agora papa Leão XIV, se graduou em Matemática pela Villanova University em 1977, mesmo ano em que entrou no noviciado na ordem agostiniana (a mesma que administra a Villanova). Enquanto fazia seu mestrado em Teologia, ele ensinou Física e Matemática em uma escola agostiniana de ensino médio em Chicago. Depois disso, mergulhou de vez nos estudos religiosos, fazendo pós-graduações em Direito Canônico em Roma antes de se tornar missionário no Peru – o resto da história todos nós já conhecemos.
Vários sites e perfis em mídias sociais dedicados ao diálogo entre ciência e fé notaram a ligação de Prevost com a ciência, mas até o momento ninguém achou nenhum pronunciamento ou escrito de Prevost sobre o assunto. O papa Francisco – que, antes de se tornar jesuíta, também obteve um diploma de técnico em Química – escreveu de passagem sobre ciência e fé em alguns de seus documentos; quem sabe Leão XIV não nos presenteia com alguma encíclica ou carta apostólica sobre ciência e religião no futuro?
Colunista em férias; voltamos em junho
A coluna de hoje deveria ter saído no sábado passado, mas eu estava em Roma, cobrindo o conclave que elegeu Leão XIV, e precisei “pular” uma semana; agora, eu saio de férias por duas semanas e meia, e por isso também não teremos Tubo de Ensaio daqui a uma quinzena. Mas em meados de junho estaremos de volta!
Fonte: Revista Oeste