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Era Trump coloca em xeque papel das organizações internacionais


A Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e a Organização Mundial do Comércio (OMC) foram criadas para enfrentar crises globais que países sozinhos não conseguiriam dar conta — como pandemias, guerras, colapsos econômicos. Por muito tempo, tais instituições funcionaram como uma espécie de “árbitras” das grandes questões do planeta. Mas esse cenário, ao que tudo indica, está começando a mudar.

Burocracia, lentidão e decisões consideradas cada vez mais distantes da realidade dos países-membros fizeram crescer as críticas da sociedade contra essas instituições — críticas que ganharam novo fôlego com a ascensão de líderes como Donald Trump, que desafiam abertamente o antigo consenso internacional. O que antes era visto como pilar da ordem internacional, agora, para muitos, passou a ser considerado um obstáculo aos interesses nacionais.

A OMS é um caso emblemático desse novo momento. Criada para liderar respostas globais em saúde, a entidade passou a ser alvo de críticas especialmente durante a pandemia de Covid-19, sendo acusada de lentidão, arbitrariedade e excesso de influência política — principalmente por parte da China. Com a volta de Trump ao poder, os Estados Unidos anunciaram a saída da OMS, desencadeando quase um efeito dominó: a Argentina de Javier Milei seguiu a mesma trilha e uniu forças com Washington para propor a criação de uma nova organização internacional de saúde, prometendo mais “transparência e menos burocracia”. O gesto de ambos os países escancarou o quanto a legitimidade das instituições internacionais está em xeque neste momento. Os americanos eram os maiores financiadores da OMS – que, sem a verba de Washington, já anunciou medidas de contenção, incluindo a redução de seu orçamento para o período de 2026-2027 em cerca de 21%.

A ONU também atravessa sua pior crise em anos. Sob o governo Trump, a entidade sofreu atrasos e cortes drásticos nos repasses dos Estados Unidos, levando à confirmação, nesta semana, de que quase sete mil cargos serão eliminados a partir de janeiro de 2026. Mas o abalo vai além das finanças: a organização é alvo de críticas severas de Israel, que acusa a ONU de adotar posições favoráveis ao grupo terrorista Hamas em atos públicos e votações recentes. Investigações israelenses também revelaram que a Agência da ONU para Refugiados Palestinos (UNRWA) empregava terroristas ligados aos ataques do dia 7 de outubro de 2023, que resultou em um grande massacre de civis em Israel. Essa combinação de cortes, polêmicas e aparente dificuldade de se manter neutra nas questões internacionais intensificou a crise de confiança em torno das Nações Unidas.

No comércio internacional, a Organização Mundial do Comércio (OMC) enfrenta paralisia desde que os EUA, sob Trump, bloquearam a nomeação de juízes para o órgão de apelação da instituição. Os americanos afirmam que o sistema serve apenas para beneficiar a China e não responde às disputas do comércio digital e de propriedade intelectual. O resultado desta medida tem sido uma OMC cada vez menos relevante como árbitra de disputas entre grandes potências.

Nem mesmo a Otan está escapando desta atual crise de credibilidade. Os Estados Unidos, sob Trump, têm exigido que aliados europeus aumentem seus gastos militares, deixando claro que não pretendem mais arcar sozinhos com a conta da segurança coletiva. Em 2024, apenas um terço dos membros da aliança atingiu a meta mínima de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) destinados à defesa. As cobranças públicas dos americanos acabam expondo para potenciais adversários o desequilíbrio interno que vive a aliança ocidental e alimentam debates sobre a sua real efetividade e unidade frente a eventuais conflitos.

“Reinvenção”, não o “fim”: o que dizem os especialistas

No centro desse debate está a pergunta: ainda precisamos dessas organizações para resolver os problemas do mundo? Ou chegou a hora de rever — ou reinventar — o modelo de governança global?

Em entrevista à Gazeta do Povo, Marcello Marin, mestre em Governança Corporativa, disse que a “relevância dessas organizações continua enorme”.

“O que acontece é que elas estão enfrentando um mundo mais fragmentado, com potências questionando as regras do jogo. Mas perder o sentido? Ainda não. O problema está mais na governança e na capacidade de se adaptar, não na necessidade de existência delas”, afirmou Marin.

Eduardo Galvão, professor de Políticas Públicas do Ibmec e diretor da consultoria global Burson, afirma que as dúvidas que pairam sobre essas organizações hoje dizem mais respeito à sua eficácia diante dos desafios atuais do que à necessidade de existirem ou não. De acordo com o professor, a sociedade vive atualmente um “período de transição, em que o modelo multilateral construído no século 20 vem sendo testado por realidades, lideranças e interesses do século 21”.

“O que está em xeque é a eficácia dessas instituições, que parecem cada vez mais distantes das demandas concretas das nações”, ponderou em entrevista à Gazeta do Povo. “Quando grandes países cortam recursos, saem de órgãos ou bloqueiam decisões, eles expõem um sistema que parou no tempo”, afirmou.

Segundo Galvão, ainda que a pandemia de Covid-19 e os recentes conflitos globais não sejam culpa dessas instituições internacionais, expuseram suas limitações diante de desafios cada vez mais complexos.

“Hoje, o mundo precisa de estruturas mais ágeis, mais inclusivas e mais orientadas para resultados. O surgimento de novos fóruns, alianças por tema e redes horizontais é um sinal claro de que o multilateralismo está migrando para formas mais líquidas”, analisa o professor.

Contudo, Galvão ponderou que ainda não se trata do “fim” das instituições multilaterais tradicionais — como ONU, Otan, OMS e OMC —, mas de um momento de “reinvenção”.

“A nova ordem internacional não está se construindo a partir do abandono das instituições, mas da sua reconfiguração. O caso dos Brics ilustra bem essa tendência: trata-se de um arranjo mais flexível, com menor imposição normativa e maior tolerância à diversidade política entre os membros. Mesmo nas instituições tradicionais, o que pode se tornar irrelevante não é o tema — como saúde, defesa ou comércio —, mas a incapacidade de se adaptar às novas dinâmicas do cenário global”, explica Galvão.

Para Marin, o cenário de críticas constantes e desconfiança em relação às organizações tradicionais pode ter relação direta com as limitações estruturais que elas enfrentam atualmente.

“Muitas vezes o público espera soluções rápidas (para os problemas mundiais), mas elas (as organizações internacionais) são lentas por natureza — pois precisam de consenso entre dezenas de países”, lembra. Marin também apontou que a politização dos problemas enfrentados por essas instituições e as falhas reais que elas cometem, como falta de transparência e decisões distantes da realidade, estão “minando ainda mais a confiança” da sociedade nelas.

O analista lembrou que, sem o apoio de grandes potências como os Estados Unidos, existe, sim, o risco dessas organizações internacionais perderem relevância ou até desaparecerem.

“Organizações internacionais não têm força própria — elas funcionam porque os países as sustentam, financeiramente e politicamente. Sem o apoio das maiores potências, elas ficam travadas, com menos recursos e autoridade”, afirma.

Contudo, há também a possibilidade de elas resistirem à crise que enfrentam e acabarem sob influência de outras potências, que podem ser perigosas.

“Quando os EUA se retiram, outros atores podem ocupar esse espaço. A China, por exemplo, vem aumentando sua influência em organismos como a OMS e a ONU. Ou seja, a relevância pode até mudar de mãos, mas o vácuo de poder nunca dura muito.”

Novas iniciativas

Sobre o anúncio feito pelos EUA e Argentina da criação de uma entidade internacional de saúde paralela à OMS, Marin define mais como um “gesto político” de ambos os países do que a apresentação de uma alternativa real.

“Para se criar uma instituição global de saúde exige tempo, coordenação, legitimidade internacional — algo que nem os EUA nem a Argentina estão oferecendo nesse momento. Então, por enquanto, é mais uma forma de dizer ‘não confiamos na OMS’ do que um plano realista. Mas é perigoso, porque mina a cooperação global em saúde, num momento em que o mundo deveria estar mais unido, não dividido”, disse.



Fonte: Revista Oeste

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