Encontramos Dora Morelenbaum durante o Circuito Nova Música, que a levou para shows itinerantes com outras bandas pelas cidades de São Paulo, São José dos Campos, Americana e Campinas. Longe da dinâmica intensa que marcou seus tempos no Bala Desejo, ela parece estar exatamente onde precisa estar: em estado de contemplação, descobrindo nuances de seu próprio trabalho que só a solidão criativa pode revelar.
Filha de músicos que integraram a banda de Tom Jobim, Dora carrega no DNA uma herança musical que demorou para aceitar como verdadeiramente sua. Seu pai é violoncelista, arranjador, maestro, produtor musical e compositor; sua mãe é cantora. “Eles participaram por muitos anos da banda do Tom e isso pautou muito o trabalho deles depois disso também. Até hoje eles são grandes divulgadores da obra do Tom“, conta.
A avó dava aulas de piano e foi sua primeira professora. “Mas ainda era nessa dinâmica, eu era muito pequena ainda. Sempre foi uma coisa que eu era apaixonada, também, de alguma forma”.
A descoberta da própria voz
“Acho que só na adolescência eu falei: não, eu quero fazer isso. Mas eu gosto de uma coisa diferente daquilo que já era natural ali em casa”, relembra. Foi quando conheceu amigos da escola com outras referências musicais que algo mudou: “Aí eu fui trazendo mais para mim. Eu falei: ah, tá, isso aqui não é meu, sabe? É dos meus pais, é da minha avó”.
Foi nesse processo que começou a compor as primeiras músicas, que estão presentes no primeiro disco de estúdio solo, Pique (2024): “São três canções e mais uma que entrou depois”.
Esse primeiro EP foi importante para entender a dinâmica de produção musical. “É um assunto que me interessa muito, e que vejo cada vez mais fazendo sentido artisticamente. As pessoas que admiro têm muito essa relação também com a produção”.
Bala Desejo
O Bala Desejo se formou no final de 2020, durante a pandemia de covid-19. “Ficamos isolados juntos. Era mais porque eu estava prestes a lançar meu EP. A Julia [Mestre] também. O Lucas [Nunes] e o Zé [Ibarra] tinham uma banda juntos. E cada um estava com seus projetos querendo terminar”.
A ideia inicial era prática: “A gente falou, por que a gente não monta um estúdio na casa da Júlia e termina os trabalhos lá? Só que aí a gente começou outra coisa”.
Começamos a fazer lives e apareceu uma demanda do público falando: ‘Vocês são um grupo, adoro essa banda’. E a gente: ‘Não somos uma banda! Mas vocês estão gostando’.
Depois veio o convite da gravadora Coala para fazer show e disco. “Então foi uma sequência de fatores que se deu naturalmente. Não foi tipo, gente, vamos juntar”.
O meme e o sucesso viral
O grupo virou meme no programa Cultura Livre, quando responderam à pergunta “Cultura Livre por Bala Desejo“. “Eu acho o meme maravilhoso”, diz Dora. “Muita gente conheceu a gente por causa do meme e veio falar depois: ‘Nossa, eu ouvi o som de vocês, não conhecia. Vi no vídeo e amei’. Muita gente detestou também, mas… foda-se, faz parte”.
Para ela, é importante ter senso de humor: “A gente tem que rir de si. A gente tem que se levar a sério quando precisa se levar. E tem que não levar também quando não precisa”.
A pausa atual do grupo
Sobre o momento atual do Bala Desejo, Dora é clara: “A gente está nesse momento que a gente fala: vamos dar esse tempo e ver o que acontece. Acho que para mim, pessoalmente, tudo do Bala fez muito sentido naquele momento. O convite, a gente estar junto, os assuntos, os motivos. E agora é uma coisa totalmente diferente”.
Ela vê como um ciclo natural: “Pra gente voltar em algum momento e produzir uma nova coisa, a gente precisa ressignificar essas vontades, essas ideias”.
Turnê solo: sozinha, mas acompanhada
Dora está fazendo shows sozinha, uma experiência relativamente rara para ela. “Mesmo no meu trabalho solo, eu sempre estou acompanhada. É interessante estar sozinha também. A solidão do quarto, dos pensamentos, e esse espaço criativo que se abre”.
Ela reconhece a necessidade desses momentos:
A gente está sempre cercado de gente e muitas vezes isso, de alguma forma… você não tem tempo por conta do trabalho e não tem tempo por conta de disposição mesmo. Às vezes a gente precisa dessa solidão, mesmo que seja dolorosa.
Durante o Circuito Nova Música, ela observa os diferentes processos criativos dos colegas. “Meu momento de criação depende um pouco desse estado de solidão e de foco, de mergulho. E aí eu vejo as Veras compondo na van, com uma ideia que veio de repente… O processo criativo delas é muito movimento”.
Sobre a experiência do Circuito em si, ela destaca a oportunidade única de convivência: “Eu já fiz muita viagem com muita gente, mas nunca é assim como dessa vez. Você ou viaja com a sua própria banda e encontra com a galera no backstage por meia hora. Nunca é uma troca intensa assim”. Para ela, o formato permite descobertas: “Você vai conhecendo mais as nuances dos outros trabalhos. E é isso de levar esse som para pessoas que não conhecem, porque não existe tanta demanda de alguma forma. Ou existe, mas eles não sabem que existe”.
A música como comunicação primária
“A música foi minha língua primária”, explica Dora sobre sua relação com a arte. “Em casa e com a minha família. Entendi muito das coisas através disso, primeiro. Então é engraçado porque meu processo é meio diferente nesse sentido, meu entendimento linguístico das coisas vem depois do meu entendimento mais sutil”.
Para ela, a música transcende palavras: “Música é um assunto invisível e, ao mesmo tempo, é o que todo mundo consegue entender, mesmo sem traduzir em palavras”.
A complexidade da música brasileira
Quando fala sobre música brasileira no exterior, Dora se anima: “Várias músicas que saem do Brasil têm essa influência da complexidade harmônica. Você leva isso pra gringa e as pessoas ficam: ‘Gente!’. Todo mundo nem sabe como sentir aquilo”.
Ela credita essa riqueza à tradição musical do país: “O samba já tinha muito essa origem de muita harmonia. A bossa nova, de alguma forma, estica isso ao máximo. João Gilberto tem grande influência na galera da Bahia e tudo que vem depois disso”.
“Muitas vezes brasileiros vão ouvir uma harmonia com vários caminhos e vão achar normal e sentir aquilo de alguma forma. Você leva pra gringa e as pessoas já estranham e acham incrível”, observa.
Ela já tocou na Europa várias vezes. “Cara, é muito diferente. A galera lá vai e não tem ideia do que é o som. E está mais empolgada do que os fãs daqui”.
Recentemente, ela esteve na Polônia e ficou impressionada com a cena musical local: “Eu fui em alguns shows de experimentação, de improvisação, totalmente experimentais. E era o rolê da sexta-feira. A galera sentada, curtindo um som alucinado e alucinante. Eu falei: não existe esse lugar no Rio de Janeiro. Talvez em São Paulo existe um pouco”.
Críticas ao consumo atual de música
Sobre streaming e redes sociais, Dora é direta: “Eu não tenho uma boa leitura de coisas que acontecem na internet, talvez isso me coloque como pessoa velha. Mas 15 segundos não é uma música, é só um fragmento. Peraí, vamos ouvir a música inteira?”.
Ela só entendeu realmente o retorno do público aos shows: “As pessoas que curtem minha música curtem estar num show e se conectar com aquilo. Tem a ver com esse lugar real, presencial, a presença”.
E critica o sistema atual: “A gente está num momento meio estranho de consumo de música. Muitas coisas precisam se regulamentar para que a gente tenha um consumo mais saudável. E não só conceitualmente, mas também para que os músicos sejam pagos. Alguém está trabalhando para aquilo acontecer, e essa pessoa não está ganhando dinheiro”.
DoraMorelenbaum segue em turnê pelo Brasil e o mundo, e no próximo mês se apresenta no Coala Festival. Seu mais recente trabalho solo, PIQUE, está disponível nas principais plataformas digitais.
Fonte: rollingstone.com.br