Em 1990, Twin Peaks mudou a televisão para sempre. Misturando o drama de cidade pequena com elementos oníricos, cômicos e sombrios, a série criada por David Lynch e Mark Frost apresentou ao mundo personagens tão peculiares quanto inesquecíveis, e Bobby Briggs, o bad boy de coração mole interpretado por Dana Ashbrook, se destacou entre eles.
Em entrevista à Rolling Stone Brasil, o ator relembra sua jornada na série — que está disponível na íntegra no catálogo da Mubi —, como foi retornar a ela anos depois em Twin Peaks: O Retorno, a dinâmica nos bastidores com David Lynch e os colegas de elenco, além do impacto duradouro da série em sua vida. Confira a seguir:
O início de tudo: Como Bobby Briggs entrou em sua vida
Dana Ashbrook tinha apenas 20 anos e já estava há dois em Los Angeles quando teve sua primeira chance real de entrar no universo de Twin Peaks. O convite veio por meio de uma velha amiga, a diretora de elenco Johanna Ray.
Ela já tinha me escalado para outros testes, como para um programa do Steven Spielberg chamado Amazing Stories, que era uma antologia de meia hora, e também para um filme chamado Satisfaction. Fiz teste para os dois com a Johanna e cheguei bem perto.”
O grande impulso veio quando David Lynch, ao folhear uma pilha de fotos, apontou justamente a de Dana. “Ele gostou da minha foto. Fui a uma reunião com ele e com o Mark Frost no escritório da Johanna. A gente só conversou sobre o roteiro”, relembrou.
Primeiro contato com o roteiro: entre o espanto e a sorte
Quando recebeu o roteiro do piloto — ainda com o título Northwest Passage, e não Twin Peaks —, Dana Ashbrook não imaginava o que tinha em mãos. Até então, sua experiência era modesta, com participações em produções menores, principalmente do gênero terror.
“Eu não tinha tanta experiência. Já tinha feito alguns filmes, mas eram de terror de segunda ou terceira categoria. Nada demais. Nunca tinha lido algo tão bom. O roteiro era incrível: legal, engraçado, com mistério e personagens ótimos.”
Apesar do impacto imediato com a qualidade do texto, o ator admite que não tinha noção da grandiosidade do que viria a seguir: “Não tinha como saber que seria especial. Só depois, ao fazer testes para outras séries e perceber a diferença de qualidade, é que entendi o quão único era aquele projeto.”
Hoje, ele enxerga com clareza que tudo foi uma conjunção improvável de sorte, talento e oportunidade: “É muita sorte mesmo. Honestamente, só porque a Johanna colocou minha foto naquela pilha que o David viu.”
Naquela época, o ator Eric DaRe — que viria a interpretar Leo Johnson na série — também circulava pelo escritório. Ele era filho de Johanna e já conhecia o roteiro. Ashbrook lembra de ter trocado impressões com ele antes da reunião: “Caramba, tem uma mulher com um tapa-olho e trilhos de cortina silenciosos!”, comentou, rindo. “Achei tudo engraçado, e ele também.”
O encontro com David Lynch
Durante o encontro com Lynch e Frost, o clima era descontraído. “Quando entrei para conversar com o David e o Mark, falamos sobre as coisas engraçadas do roteiro e todos riram.” Foi nesse momento que Lynch comentou, em tom de observação, que Bobby Briggs não sorria muito. A resposta de Ashbrook foi instantânea: “Disse: ‘Ah não, odeio sorrir. Nunca mais vou sorrir de novo.’”
Depois disso, ele passou por uma sessão de leitura com a atriz Mädchen Amick, que interpretaria Shelly, sua parceira na série, ensaiando várias cenas do piloto. Logo, o papel era de Ashbrook, que lembra de o restante do processo ter sido surpreendentemente simples:
“A próxima etapa foi o teste para a emissora. Mas o David já tinha aprovado todos os atores. Então, não havia outros competidores. Foi o teste mais fácil que já fiz. Depois disso, ficou cada vez mais difícil. Hoje em dia, são cinco caras competindo com você, e todos bons. Mas naquela vez, foi diferente. Tive muita sorte.”
O susto com o retorno: “Foi como uma reunião de faculdade”
Quando questionado sobre o inesperado retorno de Twin Peaks, em 2017, mais de duas décadas após o fim da série original, Dana Ashbrook respondeu com a mesma surpresa que sentiu à época: “Foi uma loucura, né? Ninguém achava que isso ia acontecer. O próprio David dizia que estava ‘mais morto que prego em caixão’.”
A volta àquele universo surreal teve um impacto profundo, quase como uma viagem no tempo para os anos em que a série estreou. “Foi como uma reunião de faculdade. Aqueles eram meus anos de faculdade, em termos de idade. Reencontrei pessoas que tiveram grande impacto na minha vida.”
Esses reencontros reacenderam vínculos que, em muitos casos, jamais se romperam. Dana destaca a amizade duradoura com vários colegas de elenco e equipe:
Fiquei amigo de várias pessoas. Kimmy Robertson, Harry Goaz, Sherilyn [Fenn], Mädchen [Amick], Sheryl Lee, James [Marshall]… Sempre mantivemos contato. A Sabrina Sutherland também. E até com alguns membros da equipe técnica.”
Uma das maiores surpresas foi descobrir que boa parte da equipe original também estava de volta ao set, o que aumentou ainda mais o sentimento de continuidade: “Acho que uns 15 ou 20 membros da equipe voltaram. Era como se o tempo não tivesse passado.” Ele reflete ainda sobre como a tecnologia ajudou a manter esses laços vivos com mais facilidade do que nos anos 1990:
“Hoje temos mensagens, grupos, é muito mais simples. Antes, passavam semanas, meses, até a gente se falar de novo. Mas essas pessoas sempre fizeram parte da minha vida. Sou muito amigo do [Michael] Horse e do Gary Hershberger. Amo todos eles”, completou.
Trabalhar com David Lynch “era como ter um bom pai no set“
Ao ser perguntado como era trabalhar com o diretor David Lynch, Dana foi direto: “Nunca foi difícil. Era sempre divertido. Ele tem um senso de humor incrível, e o set era um lugar muito amigável”, contou. “Ele sempre foi muito respeitoso, especialmente nas cenas emocionais. E o mais bonito é que ele conhece o nome de todos no set. Ele é doce e brilhante. Todo mundo quer ouvir o que ele tem a dizer.”
Ashbrook comparou Lynch a uma figura paterna: “É como ter um bom pai. Alguém que te dá conselhos, alguém que você quer impressionar e não quer decepcionar”, disse.
“Uma das minhas cenas favoritas de todos os tempos”
Perguntamos a Dana qual era sua cena favorita de toda a série e ele logo citou uma gravação ao lado de Don S. Davis, que interpretava o Major Briggs, seu pai na série. No episódio, Bobby escuta um relato do pai sobre um sonho enigmático, e a emoção da cena só veio depois de uma intervenção cuidadosa de Lynch.
“Eu não estava conseguindo alcançar o estado emocional que a cena pedia. Aí o David levou o Don pra conversar num canto. Quando voltaram, o Don começou a chorar fora de cena enquanto dizia o texto, e aquilo me emocionou profundamente. Aquilo me fez chorar também”, recordou. “Foi uma das minhas cenas favoritas de todos os tempos.”
Ele também destacou o famoso Episódio 8, de O Retorno, como um dos seus favoritos — “Aquele em preto e branco. Achei incrível. Totalmente fora da curva.” — e demonstrou orgulho de suas cenas, especialmente as que compartilha com Amanda Seyfried (Mamma Mia!), que interpretou a sua filha. “Ela foi a escolha perfeita. A combinação entre mim e a Mädchen [Amick] não poderia ter resultado em alguém melhor. Foi uma decisão certeira.”
Sobre suas cenas da primeira temporada, Ashbrook foi sincero: “Olhando hoje, acho que poderia ter feito melhor. Era jovem, e isso faz parte. Mas a gente cresce como ator.”
Twin Peaks em uma palavra: “Fantasmagórica“
Para Dana Ashbrook, se há uma palavra capaz de definir Twin Peaks, ela é “fantasmagórica”. E ele não diz isso apenas pela aura sobrenatural da série. “É surreal, bizarro, onírico… Mas também normal, sabe?”, explicou o ator.
“É tipo [o filme] Veludo Azul, naquela cena em que tudo parece lindo e perfeito, até a câmera descer e mostrar os insetos na terra, a sujeira por baixo da grama bonita. Twin Peaks é isso. Parece uma cidadezinha qualquer, mas tem muita coisa escondida ali.”
Mais do que um mistério de assassinato ou uma paródia de novela, Ashbrook vê a série como algo que toca em zonas profundas da psique. “Tem muito mais na vida do que só esse negócio bobo de novelinha. Tem muita coisa ali. Muita coisa.”
O culto global
Quando questionado sobre o culto em torno da série ao redor do mundo, Ashbrook compartilhou experiências de outros países. “Na Inglaterra já fizeram convenções, festivais… eles amam a série”, contou.
Mas a história mais maluca foi na Bulgária. Eu estava filmando por lá e vários atores locais vieram me contar que, quando Twin Peaks passava na TV, a cidade inteira parava. Ninguém saía de casa. Todo mundo assistia. Foi uma loucura ouvir isso.”
Mesmo após tantos anos, o impacto da série ainda o impressiona. “Eu nunca tinha feito nada que tivesse tido esse sucesso — e, pra ser honesto, nem depois. Foi uma coisa muito doida. Anos realmente intensos, intensos demais.”
Um espectador entre os fãs
Apesar de ser parte central do elenco, Ashbrook revela que nunca reassistiu à série original desde os anos 1990. Mas tudo mudou com O Retorno. “Eu assisti enquanto passava na TV. Foi surreal. Muito estranho, meio insano até”, disse.
Ele lembra com emoção de uma sequência onírica nos primeiros episódios. “Vi aquela cena do sonho e pensei: ‘Nunca vi nada assim’. E o mais maluco é que nem estava no meu roteiro! Foi uma descoberta como a de qualquer espectador. Eu estava fazendo essa jornada junto com vocês.”
Com entusiasmo, Dana Ashbrook deixa transparecer o carinho pelo projeto que marcou sua jornada: uma obra que atravessou décadas, países e formatos, mas que, para ele, permanece como algo sem igual. “Foi uma jornada insana. Assustadora, bonita e completamente envolvente.”
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Fonte: rollingstone.com.br