O caso do Quênia ilustra uma acusação que é feita com frequência contra a ONU: de ser conivente com governos autoritários.
Depois de o país africano ter sido eleito no ano passado para uma cadeira temporária no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, a organização está cogitando transferir para o Quênia em 2026 as sedes de três agências hoje localizadas em Nova York.
Em fevereiro, o primeiro-secretário do gabinete do governo queniano, Musalia Mudavadi, anunciou que o país está sendo cotado para receber as sedes do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef, na sigla em inglês), o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres).
Nairóbi, a capital queniana, já é sede desde 1996 de um dos quatro principais escritórios da ONU, sede do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat).
Nova York, Genebra e Viena são as outras três cidades que abrigam as principais estruturas da ONU, e a transferência de mais agências para o Quênia seria um grande reconhecimento, aumentando a importância do escritório. Porém, o atual governo queniano está muito longe de merecer qualquer honraria.
William Ruto, presidente do Quênia desde 2022, tem um histórico preocupante de violações de direitos humanos. Antes de ocupar a cadeira presidencial, ele foi vice-presidente e ministro de três pastas diferentes (Interior, Agricultura e Ensino Superior).
Ruto esteve entre os indiciados pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) por envolvimento na violência política no Quênia entre os anos de 2007 e 2008, mas as acusações contra ele foram retiradas em 2016.
Desde que ele se tornou presidente, há três anos, denúncias de desrespeito aos direitos humanos voltaram a se tornar comuns no Quênia.
No ano passado, quando o país africano lançou sua candidatura para uma cadeira no Conselho de Direitos Humanos da ONU para o período 2025–2027, a ONG Comissão de Direitos Humanos do Quênia (KHRC) divulgou uma carta manifestando oposição.
O documento citou uma série de violações cometidas pela gestão Ruto, como repressão a manifestantes e ativistas: a KHRC relatou prisões de defensores dos direitos humanos, força excessiva da polícia contra médicos em greve e moradores de assentamentos informais que se opuseram a deslocamentos durante enchentes e, mais grave, a violenta resposta a protestos ocorridos em junho e julho de 2024, contra uma lei que propôs aumento de impostos.
“O Serviço Nacional de Polícia (NPS) e outras agências de segurança responderam com força brutal, resultando na morte de pelo menos 60 pessoas. A polícia também foi responsável por inúmeros sequestros, desaparecimentos forçados de 65 pessoas e pela detenção ilegal de mais de 1,4 mil manifestantes pacíficos”, denunciou a ONG.
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A KHRC também mencionou investigações arbitrárias e perseguição de organizações da sociedade civil que criticam a gestão Ruto e um alerta que o governo emitiu para veículos de imprensa para que não fizessem cobertura ao vivo dos protestos reprimidos com violência.
Outro ponto destacado pela ONG foi o desrespeito deliberado do Executivo queniano a ordens da Justiça. Um exemplo citado foi o do ex-inspetor-geral interino de polícia Gilbert Masengeli, que ignorou sete ordens judiciais para que revelasse o paradeiro de três defensores dos direitos humanos sequestrados por forças de segurança.
Porém, o apelo da KHRC foi em vão: em votação na Assembleia Geral da ONU, o Quênia ganhou a cadeira temporária no Conselho de Direitos Humanos.
A própria ONU denunciou a repressão no Quênia
O curioso é que as próprias Nações Unidas fizeram no mês passado um alerta sobre as violações do governo queniano.
Um boletim do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (OHCHR) mencionou que ocorreram pelo menos 11 mortes e 567 prisões em novos protestos em 7 de julho, após outros 15 manifestantes terem sido mortos e centenas terem ficado feridos durante protestos em 25 de junho em Nairóbi e outros pontos do Quênia.
A porta-voz do OHCHR, Ravina Shamdasani, afirmou no comunicado que o alto comissário da ONU para os Direitos Humanos, Volker Türk, “repete seu apelo para que todos os assassinatos relatados e outras supostas violações e abusos do direito internacional dos direitos humanos, inclusive com relação ao uso da força, sejam investigados de forma rápida, completa, independente e transparente”.
Após a cadeira temporária no Conselho de Direitos Humanos, ainda não se sabe se a ONU realmente recompensará o Quênia novamente, com a transferência de três agências de Nova York.
No começo de agosto, o porta-voz adjunto da ONU, Farhan Haq, disse que tais conversas ainda estão “nos estágios iniciais”.
“Não é uma decisão certa. Há certas opções sendo consideradas para tornar as Nações Unidas menos custosas”, afirmou Haq, segundo informações do jornal The Kenya Times.
“Uma das medidas que estão sendo consideradas é transferir mais operações da ONU para o campo e para locais com custos operacionais mais baixos. Isso é algo que as agências relevantes estarão analisando”, acrescentou. Resta saber se a ONU consumará esse vexame.
Fonte: Revista Oeste