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Chorando Canções – Rolling Stone Brasil Chorando Canções


A minha primeira vez foi com música instrumental, ouvindo uma fita K7. A música era “Tributo a William Clarke”, de Flávio Guimarães, expoente da gaita no Brasil. Ali no escuro do quarto, aquele blues me tocou e eu chorei. A primeira vez que me refiro aqui é o meu primeiro choro ouvindo música. O ano era 2001, eu ainda um estudante de gaita (acho que agora você consegue entender meu arroba, cirigaita) e, além deste instrumento, já arriscava as minhas primeiras composições, em sua maioria sambas de um menino de pouco mais de 15 anos tentando entender o mundo, inspirado fortemente na obra de Adoniran Barbosa, o segundo artista que me fez chorar, com uma parceria com Vinicius de Morais, “Bom Dia Tristeza”.

A voz rouca de Adoniran, embargada por emoção e muitas cartelas de cigarro, provavelmente, foi dilaceradora e, mesmo sem nenhuma paridade de experiência de vida com seus autores, eu, um menino, ouvia aquilo e chorava: “Se chegue tristeza, se sente comigo, aqui nessa mesa de bar / beba do meu copo, me dê o seu ombro/ Que é para eu chorar, chorar de tristeza / Tristeza de amar”.

Era curioso para mim ouvir homens feitos expondo suas tristeza e sendo vulneráveis. Não era Renato Russo cantando “Sempre precisei de um pouco de atenção…” e mais a frente: “Eu homem feito, tive medo e não consegui dormir” em “O Teatro dos Vampiros” de 1991. Eram coroas, de outra era da música, já falecidos.

Acontece que hoje, de pensar nisso tudo, vejo que os compositores estão faz tempo tentando nos contar que, diferentemente do que cantaram inúmeras canções, homem chora, homem mostra que chora e pode também expor suas vulnerabilidades em forma de arte.

Cresci com o termo equivocado “sexo frágil” relacionado às mulheres e ao feminino, logo, se pretendia ser um “cabra macho pra danar, um homem com H”, como provocativamente cantou Ney Matogrosso, não haveria espaço para vulnerabilidades em minha armadura, pois isso me tornaria menos homem, mais mulher.

Ney Matogrosso se apresenta em Lisboa, Portugal, em 2019 (Foto: Pedro Gomes/Redferns)

Mas a música mostrou e mostra que essa matemática tá errada, e a busca para equilibrar as duas metades que nos compõem deveria ser a meta. Jorge Ben Jor cantou na faixa “Hermes Trismegisto E Sua Celeste Tábua De Esmeralda”, no álbum A Tábua de Esmeralda de 1974:

E como todas essas coisas são e provêm de um
pela mediação do um,
assim todas as coisas são nascidas
desta única coisa por adaptação.
O sol é seu pai, a lua é a mãe.

Sol e Lua, masculino e feminino, representando o equilíbrio necessário entre as duas forças, mas talvez estivesse tudo muito codificado para entendermos. Então, veio Gilberto Gil em um dos seus álbuns mais pop, Realce (1979), e nos trouxe um hino e um guia com “Super-homem (A canção)”:

Um dia
Vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter

Que nada
Minha porção mulher, que até então se resguardara
É a porção melhor que trago em mim agora
É que me faz viver

E, na trilha de Gil, veio Pepeu Gomes e cantou:

Que ser um homem feminino
Não fere o meu lado masculino
Se Deus é menina e menino
Sou masculino e feminino

Pepeu Gomes em “Masculino e Feminino” (1991)

Percebo que há uma contra-força-tarefa no trabalho de compositores para desarmar esse Homem ideal que diariamente é oferecido como modelo. Uma força plural que oferece novas perspectivas como as de Gil, Ney, Pepeu e outra que ainda reivindica o básico: poder chorar livremente.

Seja com Fager, cantando os versos de Accioly Neto em 1994:

O cabra pode ser valente
E chorar
Ter meio mundo de dinheiro
E chorar
Ser forte que nem sertanejo
E chorar
Só na lembrança de um beijo
E chorar

Ou com Gonzaguinha, autor também de “Homem com H”, mas aqui com “Um Homem Também (Chora Guerreiro Menino)”, de 1983:

Um homem também chora,
Menina morena,
Também deseja colo
Palavras amenas
Precisa de carinho
Precisa de ternura
Precisa de um abraço
Da própria candura

Recentemente, o jogador de futebol Neymar Jr. desabou em choro após derrota do Santos para o Vasco por 6 x 0 e, no dia seguinte, a torcida foi cobrar o time pela lavada. No entanto, quero usar a atitude do líder como termômetro de onde estamos ainda nessa discussão, onde um homem chorar em público ainda é um tabu. “Você é um dos maiores jogador do planeta. Se você chorar, imagina o resto desses caras”.

Neymar Jr. chorando
Neymar Jr. após eliminação da Seleção Brasileira na Copa do Mundo 2022 contra a Croácia (Foto: Marvin Ibo Guengoer – GES Sportfoto/Getty Images)

Sim, o básico é necessário ainda. Homens sofrem em silêncio, e nesse silêncio, nessa angústia, externam suas dores da pior forma, com uso da violência direcionada a outros homens e também a outras mulheres. É preciso lembramos que, no ano de 2024, Brasil bateu o recorde nos casos de feminicídio e a taxa de suicídio entre homens é 7,2% maior que entre as mulheres. Homens precisam procurar ajuda, falar, se abrir e mesmo chorar, como cantou Mano Brown (também torcedor do Santos) em 2002:

O que adianta eu ser durão e o coração ser vulnerável?
O vento não, ele é suave, mas é frio e implacável
Borrou a letra triste do poeta
Correu no rosto pardo do profeta
Verme, sai da reta
A lágrima de um homem vai cair
Esse é o seu B.O. pra eternidade
Diz que homem não chora
Tá bom, falou
Não vai pra grupo, irmão
Aí, Jesus chorou

Entendo como essas atitudes podem ser um primeiro passo para nos libertarmos finalmente, como ironicamente está implícito no sample escolhido por KL Jay para “Jesus Chorou”: “Free At Last”, de Al Green.

Talvez se nós homens pararmos para ouvir essa voz coletiva que há anos vêm nos oferecendo amparo através da música, possamos abrir uma discussão sobre quais masculinidades cabem dentro de nossa subjetividade. Tenho certeza que são muitas, muito além dos modelos de Super-Homem, com H maiúsculo ou minúsculo, que compreendam nossa pluralidade como seres íntegros em nossas potências femininas e masculinas, dotados de sensibilidade, essa mesma que acessamos para fazer arte e transformar o mundo em que vivemos.

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Lucas Cirillo (@cirigaita)

É produtor, compositor, gaitista, membro da Latin Grammy Academy, autodeclarado nerd sonoro, gosta de mergulhar no abissal dos álbuns e trazer histórias para suas produções, para superfície, junto com alguns peixes, quando o rio tá bom pra pesca: sua outra paixão.



Fonte: rollingstone.com.br

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