O mistério em torno de um avião cargueiro russo de uma empresa sancionada pelos Estados Unidos toma conta do Aeroporto Internacional de Brasília. Entre funcionários, motoristas de aplicativos e taxistas e membros de empresas privadas que operam no aeroporto, a informação sobre o pouso do avião é cercada de curiosidade, desconfiança e até de deslumbramento.
Trata-se de um avião modelo Ilyushin IL-76, um cargueiro estratégico, frequentemente usado para transportar equipamento militar pesado. Ele é operado pela empresa Aviacon Zitotrans, que foi incluída em 2023 na lista de sanções dos Estados Unidos por transportar cargas suspeitas para a Venezuela.
O pouso em Brasília ocorreu no domingo (10) e virou assunto dos funcionários do aeroporto. “O avião é lindo, enorme. Tem um barulho diferente”, disse um deles, que trabalha no local há mais de seis anos e disse que nunca tinha visto ou ouvido falar de um pouso tão misterioso quanto este.
Ao pousar, o avião russo utilizou a pista do aeroporto, mas se deslocou logo em seguida para a Base Aérea de Brasília, onde ficou isolado e escondido por árvores. Mas de longe era possível ver parte da cauda do avião, que tem quase 15 metros de altura.
Apaixonados por aviação estão fazendo uma vigília no terminal de passageiros esperando por alguma movimentação da aeronave. “Estou aqui desde segunda-feira, esperando para fotografar”, disse David Silva, que é plane spotter ( observador de aviões, em inglês).
Mas entre parlamentares, profissionais de segurança e pilotos o sentimento não é de deslumbramento, mas desconfiança e revolta. “Nenhuma belonave ou aeronave, nenhum equipamento militar pode estar presente no Brasil sem autorização do Congresso Nacional. E nós não recebemos nenhuma informação do governo, ficamos sabendo pela imprensa”, disse o deputado federal general Girão (PL-RN).
A presença da aeronave russa ocorre um dia após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fazer contato por telefone com o ditador russo Vladimir Putin. O Planalto afirmou, em nota, que os dois discutiram o atual cenário político e econômico internacional e falaram sobre a cooperação entre ambos os países no âmbito do Brics (bloco diplomático formado por Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito, Etiópia, Indonésia e Irã).
A chegada do avião vem sendo comparada a um episódio ocorrido no início de 2023, quando o governo Lula autorizou dois navios militares iranianos a atracarem no Brasil. A fragata Iris Dena e o porta-helicópteros Iris Makran permaneceram no porto do Rio de Janeiro entre os dias 26 de fevereiro e 4 de março e causaram desgaste diplomático com os Estados Unidos, que pediram para que a atracação dos navios não fosse autorizada.
A Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) disse que a última autorização de operação não regular concedida à empresa Aviacon Zitotrans, operadora do avião, expirou em abril de 2023, sem que tenha havido renovação. A agência encontrou registros da chegada do avião nos sistemas de autorização de sobrevoo e pouso após ser questionada pela reportagem.
A Força Aérea Brasileira (FAB) confirmou a passagem da aeronave pelo BRasil mas não forneceu informações sobre a carga ou sobre a tripulação. A Inframerica, empresa administradora do aeroporto, apontou que informações só poderiam ser obtidas com a FAB.
A reportagem apurou que no Terminal de Logística de Carga não houve demanda para que funcionários do aeroporto fizessem carga ou descarga do avião. Isso não significa, no entanto, que não houve nenhuma movimentação, já que o procedimento pode ter sido feito diretamente na Base Aérea por militares da FAB.
A aeronave russa pode transportar de 28 a 60 toneladas de carga e acomodar até 145 soldados. Além da Rússia, as Forças Aéreas de países como a China, a Síria e o Irã têm ou já tiveram aeronaves deste modelo. A última parada do cargueiro russo havia sido no aeroporto de Conacri, na Guiné, que vem sendo usado pelo Africa Corps (grupo mercenário subordinado ao governo russo que sucedeu o Wagner Group) para distribuir armamentos pelo continente africano.
“A população brasileira tem o direito de saber, com total clareza, qual a natureza da carga transportada, quem são os tripulantes e qual a missão que essa aeronave veio cumprir em nosso território. A soberania e a segurança nacional exigem respostas imediatas, especialmente quando o governo parece criar, deliberadamente, atritos com nações parceiras”, declarou o Senador Bittar (União-AC), que protocolou requerimentos de informações direcionados ao Ministério da Defesa e ao Ministério das Relações Exteriores para que prestem esclarecimentos. Se o requerimento for aprovado, o governo terá 30 dias para responder.
Pouso em Brasília é envolto de mistério e desperta curiosidade
Na quarta-feira (13), por volta do meio dia, ainda era possível ver a cauda do avião russo a partir do segundo andar do terminal, em uma das áreas de acesso público do aeroporto, que fica voltada para onde ficam as pontes de embarque (fingers). Dali, apaixonados por aviação também miravam o horizonte.
A informação sobre o avião russo também correu os grupos de aplicativos de mensagens relacionados ao aeroporto de Brasília e a pilotos civis. Os pilotos usam os grupos de WhatsApp para trocar informações sobre novidades da aviação e, em geral, recebem dados de colegas que avistaram aeronaves diferentes ou se comunicaram com elas pelo rádio. Dessa vez, a pergunta sobre a aeronave russa circulou dias sem que alguém descobrisse quaisquer informações.
Funcionários do terminal de Brasília afirmaram à reportagem que a tripulação da aeronave russa não saiu da base aérea. O local conta com pelo menos dois hotéis de trânsito, um para oficiais e outro para suboficiais e sargentos, que podem ter abrigado a tripulação. Sites especializados em aviação apontam que o modelo precisa de pelo menos três tripulantes para operá-la. A depender das modificações que podem ter sido feitas, no entanto, podem ser necessários sete tripulantes.
Integrantes da Força Aérea Brasileira abordados pela reportagem no aeroporto mencionaram ter conhecimento sobre o avião, mas disseram: “Não é sigilo, mas não podemos falar sobre ele”, afirmou um sargento que não se identificou.
Trajeto do avião russo e informações sobre a tripulação
O avião russo saiu de Moscou no dia 7 de agosto e fez uma primeira parada em Baku, capital do Azerbaijão. No dia seguinte, a aeronave foi até Argel, capital da Argélia. Já no dia 9 de agosto, o destino foi a Guiné. Partindo de Conacri, já na madrugada do dia 10 de agosto, a aeronave aterrissou em Brasília as 8h12, segundo registros do site flightradar24.
Diferente dos outros países por onde passou antes de pousar em Brasília, onde ficou em solo por menos de um dia, no Brasil o avião russo somou três dias completos.
Durante a quarta-feira (13) não estava claro quem abasteceria o avião. O caso é similar a episódio envolvendo o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov. Em sua visita ao Brasil em fevereiro de 2024, ao aterrizar no Aeroporto Internacional do Galeão (RJ), o avião russo Ilyushin IL-96 que o transportava teve o abastecimento negado por todas as empresas locais.
Dias depois, a Jetfly Combustíveis forneceu querosene de aviação, ação que levou a empresa a ser incluída na lista de companhias proibidas de abastecer aeronaves de matrícula norte-americana. No caso atual, o Il-76 seria abastecido pela BR Aviation, a antiga BR Distribuidora, mas a informação não foi confirmada. No episódio de Lavrov, essa mesma empresa havia se recusado de fornecer combustível ao avião russo.
O voo misterioso da Rússia decolou às 19h16 de quarta-feira (13) da Base Aérea de Brasília e voou para a Bolívia. O governo Lula não prestou esclarecimentos sobre o voo. Senadores se preparam para questionar o Ministro da Defesa José Múcio Monteiro em audiência marcada na Comissão de Relações Exteriores (CRE) do Senado marcada para 10h desta quarta-feira (14).
Fonte: Revista Oeste