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A viagem que uniu Dora Morelenbaum, Iorigun e Vera Fischer Era Clubber pelo interior de SP


Existe um momento na carreira de todo artista em que o palco deixa de ser apenas um lugar onde se toca música para se tornar uma janela para algo maior. É quando você olha para a plateia e sente que está quase lá, quase tocando mais gente, quase sendo descoberto, quase famoso. Foi exatamente isso que presenciei durante quatro dias na estrada com três nomes que, à sua maneira, buscam esse reconhecimento que todo músico sonha.

Em 2000, Cameron Crowe levou ao cinema uma fantasia que todo jornalista musical já teve: acompanhar uma banda em turnê pela Rolling Stone. Quase Famosos virou clássico por capturar essa intimidade única da estrada, onde a música deixa de ser produto para virar experiência compartilhada. Quando a Rolling Stone Brasil recebeu o convite para embarcar na terceira edição do Circuito Nova Música, a referência veio imediatamente. Só que aqui não havia roteiro hollywoodiano: era tudo real e mais complexo que qualquer ficção.

A van como laboratório criativo

O Circuito Nova Música é uma iniciativa da produtora Vegas Cultural que materializa algo comum nos EUA e Europa, mas raro no Brasil: a cultura da van. Com curadoria de Lúcio Ribeiro, a proposta é criar pequenos circuitos de circulação para bandas e artistas da nova cena brasileira em cidades fora do eixo tradicional. A cada edição, diferentes atrações circulam juntas e, em cada cidade, um artista local abre o evento, gerando troca de experiências e fomento cultural.

“É mais que um projeto, é viagem, é estar junto, é interagir”, define Lúcio.

Viajar pelo Brasil é mega difícil para os artistas. A gente vê muito isso na cena inglesa, americana, mas aqui temos várias camadas para superar.

Em sua segunda edição, entre os dias 31 de julho e 3 de agosto de 2025, o Circuito passou por São Paulo (Casa Rockambole), São José dos Campos (Hocus Pocus), Americana (Espaço GNU) e Campinas (Coletivo Mangueira). No line-up: Dora Morelenbaum, a ex-Bala Desejo em sua fase solo sofisticada e intimista; a banda Iorigun, de Feira de Santana–BA, com seu indie rock; e as intensas e performáticas Vera Fischer Era Clubber, de Niterói–RJ, com sua mistura de punk, club music e poesia. As bandas locais convidadas foram Caco Concha, Bucareste, Do Prado e Sutiã Rasgado.

Na manhã de sexta-feira, todo mundo se encontrou no lobby do hotel para a primeira viagem. A van estava lotada, a empolgação parecia excursão de escola. Ainda era difícil associar rostos a funções porque além dos artistas —- Dora; os quatro integrantes da Iorigun (Iuri, que faz vocais e guitarra; Moysés, baixo e vocais; Leonel, bateria; e Diego, guitarra); e as quatro das Veras (Crystal no vocal, Malu no baixo, Pek0 nos beats e Vickluz nos teclados) —-, havia muita gente envolvida: produção, equipe audiovisual, redes sociais, apoio técnico. 

Me sentei do lado de Crystal, que é uma metralhadora de assuntos variados e infinitos. Quebrar o gelo é com ela mesma. Em poucos minutos, saltamos de memes da internet para o mito da caverna de Platão com o maior incentivo das colegas de banda, que transformavam cada devaneio filosófico em potencial material para composição.

Os meninos da Iorigun logo entraram na onda dessa dinâmica intelectual-criativa, e a Dora assumiu naturalmente o papel de observadora atenta, absorvendo tudo com aquele jeito contemplativo que marca sua música. Numa parada para combustível, a galera aproveita para esticar as pernas, fumar um cigarro, fazer alguns registros na estrada quando alguém repara numa carreta estilo “Carreta Furacão”, cenário perfeito para fotos. Energia recarregada, voltamos para a van sem a menor chance de cochilo, porque essa van tinha virado um laboratório criativo sobre rodas.

Artistas do Circuito #02 na estrada – Henri Vasques
Gabriel Mendes
Crystal, vocalista da banda Vera Fischer Era Clubber – Gabriel Mendes
Dora e Pek0 – Gabriel Mendes

São José dos Campos: senhoras dançantes e primeiras descobertas

Chegamos a São José dos Campos para almoço, hotel e preparação. O local do show era um “canil do rock”, digamos assim. 

De cara, algo que chamou atenção foi uma mesa com jovens senhoras que assistiram todos os shows e dançaram até o final. Depois descobrimos que eram, provavelmente, mães dos caras da banda que abriu o evento. Iuri interagiu com elas durante o show e depois ficou se questionando se tinha feito a abordagem correta. Isso obviamente virou assunto de piada pelos próximos dias, e eu não perdi a oportunidade de atormentá-lo com possibilidades de manchetes escandalosas e infames como “jovem roqueiro baiano etarista”. Disclaimer: a tensão ficou por conta da dúvida entre dizer senhoras, senhorinhas, moças e por aí vai.

Dali em diante foi pura risada. Trocas de camisetas das bandas, assinatura na “parede da fama”, descontração e papos que fluíam para territórios profundos: de descobertas sonoras a moda, comportamento, experiências pessoais… As Veras, mesmo com toda a energia debochada quando falam das Kardashian e Britney Spears, são também o grupo mais acadêmico: todas com formações completas, referências que vão muito além do punk eletropop que fazem. O mais gostoso era que todos estavam à vontade.

Iuri, Crystal, Dora, Iuri – Gabriel Mendes
Pek0, Daniela (Rolling Stone), Iuri e Samara (produção Iorigun) – Gabriel Mendes

A psicologia do rock e bordões de estrada

No segundo dia de van, tentando dar um cochilo, ouvi uma conversa fascinante de Iuri sobre sua formação em psicologia e as nuances disso. Era uma dessas conversas que você poderia ouvir por horas, porque revelavam camadas inesperadas em alguém tão jovem e articulado.

Durante esses dias, usamos frases das músicas das Veras como bordões internos: “a gata agora”, “eu sem depressão”, “referências”, “outra proposta”. Virou código interno desta pequena comunidade itinerante.

Era fascinante ver como artistas de vertentes tão diferentes encontravam pontos de conexão nos lugares mais inesperados, até mesmo num almoço em restaurante por quilo com temática geek que geraria mais conversas sobre referências pop e cultura nerd.

Americana: palco aberto e a dinâmica das Veras

Em Americana, o evento tinha uma pegada diferente. O bar estava aberto à rua, com trailers de comida e um clima mais festivo. Os shows acabariam mais cedo, dando tempo extra para curtir com a turma e no dia seguinte também poderíamos acordar um pouco depois.

Aproveitei a tarde para começar as entrevistas. Conversei com Dora, que nos momentos a sós mergulhava em um trabalho criativo em andamento. Ela me explicou como aprendeu a ficar quieta e respeitar seus limites, não apenas os dos outros. Conselho sábio.

Observar as Veras no palco reforçou algo que já tinha notado da primeira vez que as vi em festival: elas têm uma dinâmica performática única. O show começa introspectivo, com uma coisa meio sensual na música “Altinha”, vai crescendo e explode na música “Ina”. É aí que elas chocam com as “outras referências”: Lindsay Lohan, Macaulay Culkin, Björk e Madonna. Uma salada de referências pop que funciona demais na hora de cativar o público. Afinal, o que as pessoas esperavam se a banda chama Vera Fischer Era Clubber?

Nessa noite também observei os meninos da Iorigun prestando atenção nos vocais de Dora, em um aprendizado coletivo.

Campinas: falhas técnicas e momentos de glória

Antes de partir para Campinas, paramos num lugar fofo para almoçar: sucos ótimos e refrigerante local que virou mais uma descoberta compartilhada. De Americana para lá fomos em carros diferentes, e já batia um sentimento melancólico de “não quero que acabe”.

Em Campinas não houve hotel. Do Coletivo Mangueira, uma casa super fofa em frente a uma horta comunitária, voltaríamos direto para São Paulo. Na parte de cima, numa sala de pilates, entrevistei Iorigun para entender mais sobre eles e a experiência. Seguimos trocando manchetes infames, especialmente depois que tomei uma bolada na cabeça durante um momento de descontração. E, sim, as Veras também têm uma música que fala de “bolada na cara”.

Foi a primeira vez que todos assistimos às apresentações completas de todo mundo: as Veras se jogaram ao som da Iorigun, contemplamos extasiados a voz da Dora e todos gritamos durante a apresentação das Veras. No meio de uma pequena falha técnica no baixo, a equipe e até o amigo da outra banda foram ajudar. Naqueles segundos eternos de tensão, Crystal segurou a atenção do público como uma verdadeira performer, transformando imprevisto em momento de conexão. Talvez tenha sido aí que mais ficou claro: estávamos vendo artistas de verdade, gente que sabe transformar qualquer situação em espetáculo.

O que fica: o sabor da quase-fama

Quatro dias depois, ninguém estava igual. Crystal, das Veras, resumiu o sentimento geral:

Me senti artista e parte de algo maior. 

O que vimos foi mais que uma sequência de shows. Foi a construção de uma comunidade musical itinerante, onde as diferenças se transformaram em pontes e a música brasileira independente encontrou novos caminhos para circular. E tudo isso só foi possível graças ao esforço de muita gente: a Maria das mídias, que se tornou tão parte da história que até ganhou uma música; a Anna do som, sempre presente com seu tablet de um lado para o outro; a galera do audiovisual (Henri, Gabe, Leo) que carregou câmeras e celulares para cima e para baixo durante todo o percurso; a Samara que arrumava os Iorigun, a Lina, meio mãe de todo mundo, indicando próximos horários e organizando a logística invisível que fez tudo funcionar, junto do Zé Guilherme, Danilo, Gustavo, Lúcio

Em tempos onde grandes festivais se concentram apenas em nomes gigantes, iniciativas como o Circuito são a prova de que existe público, talento e vontade de descobrir novos sons. E que a música independente brasileira precisa e merece esses espaços de circulação.

Foto geral antes de ir embora e, em São Paulo, simplesmente demos um “até logo!”. Porque algumas experiências são grandes demais para um “tchau”. Mas o que mais me marcou foi perceber que, por quatro dias, essas bandas viveram intensamente aquele momento que todo artista busca: ser ouvido, ser compreendido e fazer parte de algo maior que si. Elas podem não ter alcançado a fama definitiva nessa turnê, mas experimentaram seu sabor. E talvez seja exatamente isso que o filme de Cameron Crowe tentava nos dizer: às vezes, ser quase famoso por alguns dias vale mais que uma vida inteira esperando pelo estrelato.

Na estrada, todos somos protagonistas da nossa própria música.

+++ LEIA MAIS: Circuito – Nova Música, Novos Caminhos retorna ampliado para segunda edição



Fonte: rollingstone.com.br

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