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A morte e o legado de Sergei Magnitsky


“Acredito que todos os membros da equipe de investigação estão atuando como contratados sob a ordem criminosa de alguém (…) Recuso-me a participar e a ouvir a audiência de hoje porque todas as minhas petições para que meus direitos fossem respeitados foram simplesmente ignoradas pelo tribunal” (Sergei Magnitsky)

Na manhã do dia 24 de novembro de 2008, três equipes de oficiais do Ministério do Interior da Rússia, subordinadas ao tenente-coronel Artem Kuznetsov, saíram em operação pelas ruas de Moscou. Uma das equipes seguiu para a casa de Sergei Magnitsky. As outras duas foram para os apartamentos de advogados iniciantes que trabalhavam sob a supervisão de Sergei no escritório de advocacia Firestone Duncan.

Os jovens advogados não foram encontrados, mas Sergei estava em casa com Nikita, seu filho de oito anos, que se arrumava para a escola. Stanislav, o filho mais velho, já havia saído. Como não se sentira bem naquela manhã, sua esposa Natasha tinha ido ao médico. Sergei ouviu batidas na porta e, abrindo-a, deparou-se com três policiais, que anunciaram uma busca e apreensão.

A família Magnitsky vivia em um modesto apartamento de dois quartos na Rua Pokrovka, no centro de Moscou. Nas oito horas seguintes, os agentes vasculharam completamente o apartamento. Quando Natasha voltou do médico, ficou chocada e assustada, mas não Sergei. Enquanto estavam sentados no quarto de Nikita, ele sussurrou à esposa: “Não se preocupe. Não fiz nada de errado. Eles não podem fazer nada contra mim”. Os policiais ainda estavam lá quando Stanislav voltou da escola. O garoto fico furioso, mas Sergei, com sua voz calma, garantiu que tudo ficaria bem.

A busca terminou por volta das 16h. Os policiais confiscaram todos os arquivos e computadores pessoais de Sergei, fotos da família, uma pilha de DVDs infantis, até mesmo uma coleção de aviõezinhos de papel e o caderno de desenhos de Nikita. Em seguida, prenderam Sergei. Ao ser conduzido, o pai de família virou-se para a esposa e os filhos, forçou um sorriso e prometeu voltar em breve. Mas não pôde cumprir a promessa.

Assim começou o martírio de Sergei Magnitsky, advogado de Bill Browder em seu processo contra o regime russo. CEO da Hermitage Capital, uma das empresas de fundos de investimento mais bem-sucedidas do mundo, Browder foi o maior investidor estrangeiro na Rússia até 2005, altura em que foi subitamente proibido de entrar no país sob acusação de “ameaçar a segurança nacional”. Seu crime? Confrontar grandes corporações russas como Gazprom, Surgutneftegaz, Unified Energy Systems e Sidanco, expondo práticas de corrupção e má gestão por parte de oligarcas russos. Com sua atuação, o homem cruzou o caminho de ninguém menos que Vladimir Putin, que havia primeiro subjugado e em seguida se associado à corrupta oligarquia do país. Browder contou sua história no livro Alerta Vermelho: Como me tornei o inimigo número um de Putin, do qual extraio o relato a seguir.

Sergei Magnitsky foi preso no contexto da perseguição stalinista movida por Putin contra Browder, seus associados e suas empresas (que terminaram roubadas pelo governo russo). A prisão do advogado tornou-se uma tamanha obsessão do regime que Victor Voronin – chefe do Departamento K (de apoio à contrainteligência do Sistema de Crédito e Financeiro) do FSB (ex-KGB) – foi pessoalmente responsável por sua prisão.

A audiência de custódia de Sergei ocorreu no Tribunal Distrital de Tverskoi, em Moscou, dois dias após sua prisão. A polícia não tinha provas de nenhum crime nem base legal para mantê-lo preso. Sergei e seus advogados achavam que, com um caso tão frágil, a concessão de fiança seria certa. No entanto, ao se reunirem no tribunal, foram confrontados com um novo investigador do Ministério do Interior, um major de 31 anos chamado Oleg Silchenko, com uma aparência tão juvenil que sequer parecia qualificado para falar num tribunal. Mas Silchenko usava um uniforme azul impecável e, ao apresentar agressivamente as suas “provas”, confirmou que era, em essência, um oficial do Ministério do Interior.

De maneira similiar àquela com que os brasileiros estamos nos acostumando, Silchenko alegou que Sergei representava risco de fuga. Como “prova”, exibiu um ‘relatório’ do Departamento K, segundo o qual Sergei solicitara um visto para o Reino Unido e reservara uma passagem aérea para Kiev. Só que ambas as alegações eram fabricadas. O réu informou não ter solicitado visto algum para o Reino Unido, fato facilmente comprovável com uma simples consulta à embaixada britânica. Em seguida, começou a refutar a suposta reserva para Kiev, mas foi interrompido pelo juiz:

“Não tenho razão para duvidar das informações fornecidas pelos órgãos investigativos” – disse o magistrado, ordenando que o réu fosse mantido em prisão preventiva. Retirado rapidamente do tribunal, Sergei foi algemado e colocado em um veículo de transporte prisional. Passou dez dias em local não revelado, depois do que foi conduzido para o local onde passaria os dois meses seguintes, uma prisão conhecida simplesmente como Centro de Detenção de Moscou nº 5.

Sergei foi jogado numa cela com mais quatorze detentos, que tinham de dividir oito camas apenas. As luzes do cárcere permaneciam acesas vinte e quatro horas por dia, e os prisioneiros dormiam em turnos. O ambiente havia sido claramente concebido para impor privação de sono a ele e aos outros detentos. Com isso, Silchenko pretendia dobrar Sergei, forçando-o a confessar crimes inexistentes e delatar outros associados de Browder. Mas – assim como Filipe Martins – Sergei nunca se dobrou.

Durante os meses seguintes, Sergei foi transferido várias vezes, sempre para uma nova cela pior que a anterior. Uma delas não tinha aquecimento nem vidros nas janelas para barrar o congelante ar do ártico, que quase matou Sergei por hipotermia. Os vasos sanitários – que consistiam em buracos no chão – não eram separados da área de dormir. Frequentemente, o esgoto borbulhava e escorria pelo chão. Numa das celas, as únicas tomadas elétricas ficavam diretamente ao lado do vaso, então ele tinha que ferver água com a chaleira enquanto estava em pé sobre a latrina fétida.

Mas, para Sergei, pior que o desconforto físico era a tortura psicológica. Sendo o preso um pai de família dedicado e amoroso, Silchenko esmerava-se em lhe negar todo contato com seus entes queridos. Quando Sergei solicitou que sua esposa e mãe o visitassem, a resposta foi: “Pedido indeferido. Não é conveniente para a investigação”. Quando pediu permissão para falar ao telefone com seu filho de oito anos, recebeu outra negativa, sob o argumento de que o filho era “muito jovem para uma conversa telefônica”. Silchenko também recusou um pedido de visita da tia de Sergei, alegando que “não se podia provar” que ela fosse parente.

Quatro meses após a prisão, Sergei foi transferido secretamente para uma prisão especial chamada IVS1. Tratava-se de uma instalação temporária fora do sistema prisional oficial, na qual, portanto, a polícia podia agir contra os detentos longe dos holofotes. Naquele local, o FSB tentaria coagir Sergei a assinar uma confissão falsa. Mas o espírito do preso parecia inquebrantável.

Lamentavelmente, o mesmo não se pôde dizer do seu corpo. No início de abril de 2009, Sergei foi novamente transferido, desta vez para um centro de detenção chamado Matrosskaya Tishina. Ali, o preso começou a padecer com dores estomacais agudas. Os episódios duravam horas e resultavam em violentas crises de vômito. Em meados de junho, ele já havia perdido quase 20 quilos, num sinal inequívoco de doença grave.

No verão de 2009, a saúde de Sergei havia se deteriorado seriamente. Na ala médica de Matrosskaya Tishina, o preso foi diagnosticado com pancreatite, pedras na vesícula e colecistite, e os médicos prescreveram um exame de ultrassom e uma possível cirurgia para o início de agosto. Uma semana antes do exame marcado, todavia, o major Silchenko decidiu transferi-lo de Matrosskaya Tishina para Butyrka, um centro de detenção de segurança máxima que, nos tempos soviéticos, fora uma estação de passagem para os gulags. Em Butyrka, não havia instalações médicas. E o que Sergei passou ali dentro foi uma experiência verdadeiramente infernal.

Já no primeiro dia na nova instalação, Sergei pediu aos agentes prisionais que providenciassem o tratamento médico de que precisava. Mas a demanda foi solenemente ignorada. Durante semanas, o pobre definhou em sua cela, com uma dor cada vez maior e lancinante. A certa altura, a dor de estômago tornou-se tão aguda que ele não conseguia deitar. Cada posição suscitava dores horríveis através do plexo solar e do peito. Só conseguia algum alívio quando dobrava os joelhos e se encolhia em posição fetal, rolando de um lado para o outro. Apesar da dor excruciante, ele não recebeu atendimento.

Sergei e seu advogado escreveram mais de vinte solicitações desesperadas para todos os setores do sistema penal e judicial da Rússia, implorando por atendimento médico. A maioria das petições era ignorada e, quando não, as respostas recebidas eram chocantes. O major Silchenko, por exemplo, escreveu: “Nego integralmente o pedido de exame médico”. Um juiz do Tribunal Distrital de Tverskoi, Aleksey Krivoruchko, respondeu: “Seu pedido para revisar as reclamações sobre a retenção de atendimento médico e tratamento cruel foi negado”. A juíza Yelena Stashina, uma das magistradas que ordenou a continuidade da preventiva de Sergei, decidiu: “O seu pedido para revisar os registros médicos e as condições de detenção é irrelevante”.

Enquanto era sistematicamente torturado em Butyrka, Sergei passou a receber visitas regulares de um homem que se recusava a se identificar ou revelar a instituição à qual pertencia. Sempre que o homem chegava, os guardas arrastavam Sergei de sua cela para uma sala abafada e sem janelas. Os encontros eram breves, porque o sujeito trazia sempre a mesma mensagem: “Faça o que queremos, ou as coisas vão continuar a piorar para você”.

Nesse ínterim, Bill Browder passava noites em claro pensando no sofrimento de seu advogado e amigo. Numa noite, ficou sobressaltado ao ouvir o alerta de correio de voz de seu celular. Como nunca ligavam para o seu BlackBerry, cujo número quase ninguém tinha, ele pressentiu algo ruim. Olhando apreensivo para a mulher, Browder discou para ouvir o correio de voz. Havia uma mensagem: sons de um homem vitimado por um espancamento brutal. A vítima gritava e implorava. A gravação durou cerca de dois minutos e foi cortada no meio de um gemido de dor.

Ocorre que, quando o corpo de Sergei Magnitsky já estava em estado crítico, os agentes prisionais de Butyrka decidiram finalmente enviá-lo ao centro médico de Matrosskaya Tishina para receber cuidados de emergência. Ao chegar ali, no entanto, o preso não foi levado para a ala médica, mas para uma solitária, onde foi algemado à grade de uma cama. Em seguida, adentraram o local oito guardas com equipamento completo de choque.

Sergei exigiu que o oficial responsável chamasse seu advogado e o promotor. “Estou aqui porque denunciei os 5,4 bilhões de rublos roubados por agentes da lei” – disse. Mas os guardas não estavam ali para ajudá-lo, senão para surrá-lo. E assim o fizeram brutalmente, com cassetetes de borracha. Uma hora e dezoito minutos depois, um médico civil chegou e encontrou Sergei Magnitsky morto no chão da cela.

É claro que o Estado assassino tratou de acobertar o ocorrido. Algumas horas depois da morte, quando o corpo mal esfriara, o Comitê Estatal de Investigação da Rússia apressou-se em anunciar: “Não foram identificadas razões que justifiquem a abertura de uma investigação criminal após a morte de Magnitsky”. Três dias após o sepultamento, a Procuradoria-Geral da Rússia emitiu um comunicado afirmando que não havia encontrado “nenhuma irregularidade por parte dos oficiais nem violações da lei. A morte ocorreu por insuficiência cardíaca aguda”. Por fim, dias depois, o diretor do presídio Matrosskaya Tishina declarou: “Nenhuma violação foi constatada. Qualquer investigação sobre a morte de Magnitsky deve ser encerrada e o caso arquivado”.

Mas, graças sobretudo ao modo como o prisioneiro lidou com o cárcere, o caso não pôde ser abafado. Durante seus 358 dias de detenção, ele e seus advogados apresentaram 450 queixas criminais, documentando em detalhes minuciosos as ações e os agentes que o haviam maltratado. Essas denúncias e as provas que vieram à tona desde então fizeram do assassinato de Sergei Magnitsky um dos casos de violação de direitos humanos mais emblemáticos e bem documentados do século 21. E é por isso que, para que sua morte brutal não fosse em vão, recebe o seu nome a lei que busca punir agentes do Estado violadores de direitos humanos – dentre eles, o brasileiro Alexandre de Moraes e seus cúmplices. Nada mais justo, uma vez que Magnitsky é Clezão, é Filipe Martins, é Daniel Silveira, é Débora Rodrigues… Magnitsky são, enfim, todas as vítimas dos abusos de autoridade e da perversão da justiça em perseguição política.



Fonte: Revista Oeste

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