Formado por Crystal (formada em cinema e mestre em artes visuais pela UFRJ), Malu (formada em letras com mestrado em estudos de linguagem com foco em tradução poética), Pek0 (formação em teatro e graduanda em ensino de moda) e Vic (que transita entre música e arquivologia), o Vera Fischer Era Clubber nasceu de sessões de improviso pós-pandemia e se transformou em um dos projetos mais interessantes da cena independente brasileira atual.
Em conversa durante sua primeira turnê pelo estado de São Paulo, no Circuito Nova Música, o grupo revelou como transformam situações cotidianas em música e como constroem uma obra que vai muito além do que aparenta na superfície.
O encontro das linguagens
Vocês se conhecem há dez anos, mas começaram a fazer música juntas há apenas dois. O que mudou nesse encontro artístico?
Crystal: A gente se reuniu no pós-pandemia e começamos a fazer sessões de improviso. A diferença para mim entre poema escrito e música foi justamente perceber que a música tem que ser muito mais informal no dizer. Você pode criar imagens, mas não é a mesma coisa de fazer uma coisa escrita. Nem tudo que dá certo no texto vai dar certo no declamatório para cantar.
Malu: Para mim é 100% sobre experimentação de todos os sons possíveis e como aquilo faz a gente se sentir. Tentar transmitir essas emoções, às vezes em sons, às vezes em palavras. Não é nada muito definitivo.
Crystal: Para mim é mais sobre contar uma história. Fazendo esse álbum, testando as temáticas quando estávamos improvisando, eu sempre tentei colocar uma coisa que ligava nossa vivência. Temas que sinto que vivemos juntos nesse primeiro álbum.
Pek0: No formato de uma poesia popular, pensando que existe a poesia super erudita, com palavras codificadas. Enquanto existem ideias codificadas no nosso som, no geral tem uma linguagem popular. E para além de uma linguagem popular, a nossa linguagem, a forma como falamos entre nós.
Da praia para o palco: o processo criativo
O grupo tem uma característica marcante: transformar momentos cotidianos em música. “A Gata Agora” nasceu de uma playlist do Spotify, enquanto “Altinha” surgiu literalmente de uma situação na praia.
Pek0: Estava eu, Crystal e minhas amigas na praia, bem próximas da água, e os meninos jogando altinha. A bola veio na minha direção e veio na minha cara.
Crystal: Aí eu fiquei muito estressada e falei pro bofe assim “Qual foi? Não sabe jogar não?”. Ele respondeu: “Qual é? E tu? Entra aqui então!”. Só que ele era muito gostoso… E falei: “Entra você!”.
Pek0: Dessa situação toda começamos a falar e já veio surgindo a poesia. Instantaneamente, quando ela me falou “Altinha”, já me veio o beat de bossa. Não foi criado, foi acessado. Eu falei: “Tem um beat de bossa aqui”, e quando veio a proposta, cabe perfeitamente.
A construção coletiva
Um aspecto fundamental do Vera Fischer Era Clubber é como as quatro integrantes se complementam no processo criativo, cada uma trazendo sua especialidade para a construção das músicas. Apesar das formações acadêmicas robustas, o grupo opta conscientemente por uma linguagem acessível, criando o que chamam de “poesia popular”. As letras que falam de Lindsay Lohan e Paris Hilton, é porque elas são as divas de referência para todas elas, assim como as Kardashian (que está na letra da música que dá nome à banda).
Crystal: Eu sou muito boa em amarrar histórias. Então eu crio a imagem em cima da coisa que não necessariamente se relaciona ao fato de verdade.
Vic: Eu componho, mas também tenho essa relação de trazer a história.
Crystal: As letras ficam voltando para um lugar existencial porque sou muito chegada na filosofia, e isso atravessa tudo que faço. Sinto que passa por toda a estética das Veras esse lugar da transgressão, de cutucar o desejo. É sempre uma coisa do belo no nojento.
Vic: O profano sagrado. A decadência.
Crystal: Profanar a ideia de sexo, profanar a ideia de dominância. Sujar o máximo possível, principalmente sendo uma vocalista que tem uma construção feminina. Acho muito importante trazer esse lugar do sujo, do bruto, do agressivo.
Vic: A gente se encoraja muito uma à outra.
Crystal: É muito maneiro fazer uma coisa pegando com outra pessoa quando estamos juntas. São assuntos que estão rolando entre a gente, não só o assunto que eu estou trazendo.
Pek0: E é uma forma muito interessante também de ouvir o que a gente fala e admirar umas às outras, e valorizar umas às outras, e falar “pô, a sua ideia é maneira, essa maluquice que você pensou é um bafo, vamos botar isso pra frente”. Aceitar que a gente tem um lado maluca e a potência disso.
Crystal: As pessoas sempre vão olhar e não vão entender, não vão dar muita atenção, algo que é normal. É isso que diferencia um artista de uma outra pessoa que escolhe uma outra profissão, é que o artista, ele tem a visão, ele tem a perspectiva e ele vai atrás, ele vai fazer acontecer, e em algum momento só vai fazer sentido pra ele, até ele materializar.
Levados a sério através do deboche
Uma questão central para o grupo é como ser reconhecido artisticamente mantendo uma linguagem despretensiosa.
Pek0: Mesmo trabalhando com todo esse deboche, sentimos que queremos ser levados a sério.
Vic: A beleza que entregamos para o trabalho faz com que esse deboche seja levado a sério, porque fizemos esse trabalho muito seriamente. Entregamos uma reflexão em cima de um deboche que poderia ser só deboche pelo deboche.
Crystal: Você pega “Altinha” e pode levar só para um lado de sexo, mas na verdade tem muito a ver com flerte e você não poder errar. É uma guerra sexual de flerte, uma competição de conversa.
O show como jornada emocional
O set ao vivo do Vera Fischer Era Clubber foi pensado como uma experiência que evolui ao longo da apresentação, ganhando público desde a primeira música até a última. O show começa com certa estranheza, mas conforme o beat vai aumentando e as camadas se revelando, a “carioquisse” vai te envolvendo, a reação das pessoas se transforma completamente, de curiosidade inicial à total entrega.
Crystal: Eu vou me desembalando durante o show. Começo vendendo essa confiança sexual, essa marra, e na última música tenho que me transformar nessa coisa onde você se descascou ali na frente do público, mostrando sua ferida. É uma experiência muito louca, você vai tirando várias cascas. É exatamente a sensação do nosso set, do nosso álbum: é a noite caindo. É o pôr do sol para a noite caindo, e conforme vai passando, até vir o amanhecer, acontece muita coisa. Você muda, passa por muita coisa, você é vários.
Perspectivas futuras
Sobre o futuro, o grupo manifesta ambições que vão de festivais internacionais a uma continuidade do trabalho sério que desenvolveram.
Malu: Quero que vejam a gente como uma grande artista internacional de festivais. Queremos tocar em todo e qualquer lugar do mundo.
Crystal: A gente quer ser vista como amigas e família, mas também como gente que tem uma coisa para dizer.
Crystal: Eu sempre acreditei muito no trabalho e sempre tratei esse projeto no mesmo nível de todos os meus outros trabalhos. Desde o início, quando vi que ia dar certo, percebi que isso não é uma reação comum. A música tem um caminho para dentro do coração das pessoas que é muito diferente de arte conceitual. Botando trabalho não tem muito erro, uma vez que já fizemos o mais difícil: ganhar coração, colocar a cara para jogo, ter coragem de subir no palco.
Vic: Essa conexão que conseguimos criar foi um combustível absurdo para nos dedicarmos.
As Veras representam uma geração de artistas que não vê contradição entre formação acadêmica e música pop, entre reflexão profunda e linguagem acessível, entre seriedade artística e deboche. São, como elas mesmas definem, várias ao mesmo tempo, e é exatamente isso que as torna únicas na cena musical brasileira contemporânea.
Vera Fischer Era Clubberestá nas principais plataformas digitais. A banda mantém agenda de shows atualizada em suas redes sociais.
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Fonte: rollingstone.com.br