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“a evolução, se bem interpretada, não precisa ser o fim da fé”


O principal convidado do XII Congresso Latino-Americano de Ciência e Religião, do qual participei em setembro, em Roma, foi o teólogo norte-americano John Haught. Além de proferir a palestra inicial, ele também recebeu uma homenagem por sua carreira a serviço da teologia. Ele foi professor e diretor do Departamento de Teologia da Universidade Georgetown, e professor visitante em várias outras universidades; é membro da Academia Americana de Religião e da Sociedade Teológica Católica dos Estados Unidos. Haught escreveu livros como God and the New Atheism, em que ofereceu uma refutação aos principais argumentos de expoentes do Novo Ateísmo, como Richard Dawkins e Daniel Dennett, além de mostrar as falhas internas desse sistema de pensamento, por exemplo ao demonstrar que os “novos ateus” costumam construir caricaturas da religião ou mostrar apenas os exemplos mais extremistas, que são mais fáceis de criticar. Ele também é autor de Making sense of evolution, que infelizmente não consegui ler antes de ir a Roma.

Em um dos intervalos do congresso, Haught conversou com o Tubo de Ensaio, e o papo que deveria durar no máximo 15 minutos levou mais de meia hora. Falamos sobre o Novo Ateísmo, e especialmente sobre como os cristãos não precisam temer a Teoria da Evolução e suas implicações a respeito da vida na Terra, se soubermos olhar a história do planeta da maneira certa.

Temos visto notícias sobre uma onda de conversões ao cristianismo, inclusive conversões de “celebridades”, como alguns filósofos ateus, a ativista Ayaan Hirsi Ali e seu marido, Niall Ferguson…

Ferguson também?

Ao menos ele e a esposa foram batizados juntos.

Uau, estou surpreso.

… e até Richard Dawkins se declarou um “cristão cultural” outro dia, embora isso esteja longe de indicar qualquer fé religiosa da parte dele. Mas, afinal, o que está acontecendo com o Novo Ateísmo? Ele perdeu força, perdeu impulso?

Para o Novo Ateísmo ter tido sucesso, ele dependia de pessoas que tivessem um conhecimento superficial, um grau pequeno de educação científica. Mas o que aconteceu, especialmente nos Estados Unidos, foi um declínio da autoridade da ciência – um fenômeno quase oficial, dada a maneira como nosso governo lida com os fatos, tornando supérflua toda a ideia da pesquisa empírica. Nos últimos 10 a 20 anos, as pessoas passaram a usar como critério para suas ações e seus valores o fato de elas sentirem com muita força que algo é certo, por mais que falte evidência para isso.

“Eu cresci acreditando – e isso foi reforçado durante minha formação teológica e filosófica – que não deveríamos ter uma fé que também não fosse intelectualmente sólida.”

John Haught, teólogo, autor de “God and the New Atheism”

Uma das coisas que o ateísmo sério (não o Novo Ateísmo) fez, por um longo período de tempo, foi incentivar as pessoas religiosas a também levar sua fé a sério intelectualmente. Mas agora, não me parece que os cristãos, como um todo, achem importante ter uma base intelectual para sua fé. Enquanto sua crença parecer funcionar, enquanto ela os motivar a sair da cama de manhã, enquanto ela der sentido às suas vidas, os cristãos realmente não se preocupam mais em se perguntar: isso é mesmo verdadeiro? A questão da verdade foi meio que deixada de lado, e a questão da crença tomou seu lugar.

Eu cresci acreditando – e isso foi reforçado durante minha formação teológica e filosófica – que não deveríamos ter uma fé que também não fosse intelectualmente sólida. Deveríamos ser capazes de dar, como diz São Pedro na sua Primeira Carta, as razões da nossa fé, as razões daquilo em que acreditamos. Cresci assim, sendo católico, dentro de uma família que valorizava a ciência e a vida intelectual. Meus pais tinham diploma universitário. Mesmo tendo crescido em uma fazenda no interior, e tendo estudado em escolas públicas locais, seculares, sempre senti o imperativo de testar tudo empiricamente. Desde muito jovem, eu me interessei por essas perguntas: Deus existe? O que Deus significa? O que Cristo significa? O que quer dizer ser cristão? O cristianismo é verdadeiro?

Ironicamente, esse interesse não era só meu, mas também dos novos ateus. Eles também estavam interessados na verdade. Só que o critério deles para a verdade era apenas aquilo que pudesse ser aceito cientificamente. Assim, o Novo Ateísmo se baseava intelectualmente no que podemos chamar de cientificismo, a crença de que a ciência é o único guia confiável para a verdade. Com esse critério, eles afirmavam que a ciência é objetiva, e a religião é subjetiva; portanto, a ciência é verdadeira porque é objetiva, e a religião talvez seja falsa (ou, no mínimo, questionável) porque depende muito de sentimentos ou emoções.

No meu livro God and the New Atheism, defendi que, por esse critério, o próprio cientificismo é falso. Se tudo deve ser testado cientificamente, então onde estão os experimentos provando que a ciência é o único caminho para a verdade? Eles não existem. Assim, pela sua própria definição, o Novo Ateísmo falha intelectualmente. Mas isso já não importa para muita gente, até mesmo para muitos dos ateus de hoje em dia. A verdade já não é a principal questão, ela foi substituída pelo pragmatismo. Não perguntamos mais se algo é verdadeiro, mas se algo funciona.

O senhor mencionou de passagem um “ateísmo sério” em contraposição ao Novo Ateísmo. O que podemos dizer do “velho ateísmo”, aquele de Nietzsche, de Sartre? Ele segue vivo e forte? Ele apresenta um desafio maior à fé?

Sim, e sim. Quando eu lecionava na Georgetown, um dos cursos que eu dava todos os anos, principalmente para os calouros, os que vinham do ensino médio, se chamava “O problema de Deus”. Muitos dos meus colegas também davam esse curso, e todos concordamos que devíamos expor os alunos a uma crítica da religião que fosse séria, não as críticas falsas ou superficiais. Então, eu fazia uma distinção entre o ateísmo “duro”, que é o de Nietzsche, Marx, Feuerbach, Freud e outros semelhantes, e o ateísmo “suave”, que é o Novo Ateísmo cientificista – e que nem sequer está familiarizado com o “velho ateísmo”.

Dawkins, Daniel Dennett e outros não conhecem muito bem as verdadeiras razões de pessoas como Nietzsche para se revoltarem contra a religião. Esses, sim, são pensadores que ainda levo a sério, porque eles mostram o quão superficial a religião – inclusive o cristianismo – pode ser, e como algumas formas de crença podem se tornar quase demoníacas quando absolutizam certas “verdades” da fé e depois as usam como um porrete para atacar os não crentes, em vez de serem inclusivas. Curiosamente, o problema com grande parte do ateísmo atual é que ele também não é inclusivo. Ele não se preocupa de verdade com as pessoas que sofrem; apenas afirma: “o sofrimento é um sinal de que Deus não existe, e acostume-se com isso”.

Isso, aliás, nos leva de volta à sua pergunta original sobre a razão de tantas conversões hoje em dia. As pessoas estão sofrendo profundamente, com tipos de ansiedade que talvez nem tivéssemos quando éramos jovens. E ansiedade é algo com o qual não há como viver indefinidamente. Uma das maneiras de lidar com a ansiedade é encontrar alguma fonte que possa energizar a pessoa, para ela se levantar e viver com coragem, apesar da morte e do sofrimento. Essa é uma necessidade quase perene nas pessoas. Acontece que a coragem para lidar com a ansiedade – uma coragem que, no passado, era profundamente religiosa –desapareceu e deixou um vácuo que faz com que as pessoas mergulhem em novas certezas. É essa obsessão por certezas que atrai muitos à religião.

Isso não vale para todos, claro: muitas pessoas, ao longo da vida, lutam com questões sobre a vida e a morte e finalmente concluem que devem dar o salto de se unir a uma comunidade de cuidado. Elas estão procurando comunidades de esperança. Mas aí surge outro problema: pelo menos inicialmente, muitos encontram isso em grupos como seitas, que são muito atraentes no começo. Só que, acompanhando a história dessas pessoas, vemos que elas acabam se desiludindo com as seitas, porque elas têm perguntas mais profundas que não são respondidas ali. Entre essas perguntas profundas está: “Isso é verdade?” E, quando alguém chega a se fazer essa pergunta, está à beira de encontrar algo mais sólido do que aquilo que tinha antes.

O “velho ateísmo” é um sistema baseado em filosofia. É possível construir um sistema ateísta sólido baseando-se na ciência – e aí seria o caso de dizer que o Novo Ateísmo é que errou a mão –, ou essa é uma empreitada naturalmente destinada ao fracasso?

A principal base possível para um sistema ateísta baseado na ciência – não apenas o Novo Ateísmo de 20 anos atrás, mas também o ateísmo prático que vemos em universidades ao redor do mundo hoje – é a Teoria da Evolução. A biologia evolutiva mudou a fundação, a estrutura intelectual do ateísmo contemporâneo. Dawkins dizia que, antes de Darwin, as pessoas tinham uma boa desculpa para serem religiosas, mas, depois de Darwin, não havia mais essa desculpa. Por quê? Porque Darwin teria desmontado toda a ideia de Deus por meio de sua teoria sobre como a vida se diversificou baseada em alguns elementos.

O primeiro desses elementos é muito acaso: mutações aleatórias e eventos aleatórios na história da natureza, como o asteroide que atingiu a Península de Yucatán há 66 milhões de anos, no fim do período Cretáceo, exterminando os dinossauros e possibilitando que os mamíferos emergissem, evoluindo ao longo de alguns milhões de anos para criaturas mais complexas com sistemas nervosos, chegando ao surgimento dos seres humanos, muito recentemente (em termos de história do planeta). Stephen Jay Gould era um paleontólogo que enfatizava esse caráter aleatório da evolução, e as perguntas que fazia mostrariam que nossa existência não depende de Deus, mas de uma série de acidentes, somados com o segundo ingrediente da teoria evolutiva: a lei da seleção natural, que seleciona para a sobrevivência apenas aqueles organismos que, por acaso, são suficientemente adaptáveis para sobreviver e se reproduzir. O critério de aptidão, na Teoria da Evolução, é a capacidade de reprodução, e apenas alguns organismos têm essa capacidade, o que deixa tudo injusto demais com relação a todos os outros organismos e às outras espécies, das quais 99% já foram extintas ao longo da história da vida na Terra.

“Defender o cristianismo à luz dos avanços da ciência me levou a algo muito bonito: troquei o discurso sobre como o design aponta para Deus pela teologia da natureza, que busca dar sentido a essa visão dura e desafiadora da vida.”

John Haught

Portanto, o fato de a história da vida ser tão dura e acidentada impõe um problema para filósofos reflexivos de hoje, como Philip Kitcher. Ele afirma que, observando-se toda essa história da evolução e a forma como ela funciona, não há nada de providencial nela porque ela não depende do cuidado divino, mas sim de uma série de acidentes, somados a leis impessoais, como as leis da física e a lei da seleção natural. E é isso que determina os resultados. O que tenho tido de fazer nos últimos 20 a 30 anos, como teólogo, é lidar com esse aspecto do ateísmo moderno e responder às questões colocadas pela Teoria da Evolução.

A que respostas o senhor chegou? O cristianismo tem a capacidade de rebater as objeções dos ateus com base na evolução?

A maioria dos católicos ainda não percebeu de verdade o quão chocante é a evolução da vida quando analisada cuidadosamente. Isso me fez mudar de paradigma; parei de tentar defender os “argumentos de design” para a existência de Deus (como pensam os que julgam podermos conhecer Deus razoavelmente bem apenas olhando para o mundo natural) e passei para outra abordagem. Defender o cristianismo à luz dos avanços da ciência me levou a algo muito bonito: não devemos falar tanto sobre como o design aponta para Deus, usando esse tipo de teologia natural. Eu abandonei isso em favor do que chamo de “teologia da natureza”, que é diferente da teologia natural. A teologia da natureza busca dar sentido a essa visão dura e desafiadora da vida, que nos foi apresentada por Darwin. Que sentido podemos dar a isso? O que tive de fazer foi recolocar toda a história da vida dentro do contexto da história cósmica. A história cósmica, para mim, tem sido uma redenção da teologia.

A pergunta, agora, é: o que devemos pensar sobre o que está acontecendo no universo? Essa é uma pergunta maior e mais profunda do que simplesmente questionar o que está acontecendo na história da vida. Essa perspectiva nos permite ver a história da vida como parte de um despertar cósmico. Esse é o grande acontecimento do universo: um universo que está despertando.

Despertando para quê?

É aí que Deus entra, é aí que começo a falar sobre Ele. O universo está despertando para Deus, e Deus está atraindo, seduzindo o universo em direção a novas formas de ser. Mas o universo é finito, ele não dará um salto instantâneo em direção ao divino. Deus não quer soterrar o universo com Sua presença divina, mas permitir que o universo se torne ele mesmo. E, para mim, essa não apenas é uma compreensão mais bela da criação, mas também nos dá uma nova vocação. Nossa vocação não é simplesmente guiar nossa vida moral pela obediência aos Dez Mandamentos, ou mesmo pela vontade de Deus, tal como a entendíamos. Nossa vida moral é energizada pelo anseio do universo de se tornar mais, de se tornar pleno, de se tornar novo.

E isso nos dá um gosto pela vida – como diria Teilhard de Chardin – que não tínhamos na moral cristã clássica. Hoje, podemos pensar no pecado como a violação da nossa vocação de contribuir com o contínuo despertar do universo, por exemplo através da educação. Eu tenho uma estima especial pelos professores, porque eles contribuem de forma direta para o despertar do universo, ao despertarem seus alunos. E, se eles puderem ver sua vocação pela lente dessa grande motivação de participar da criação contínua ou do despertar do universo, isso lhes dará um entusiasmo pela vida, uma razão mais robusta para agir moralmente do que simplesmente pensar que estamos obedecendo a um decreto interno plantado em nossas almas.

A filosofia tradicional – pense em Immanuel Kant, por exemplo – via a fonte da moralidade como o mandamento de Deus plantado em nossas almas. Para mim. isso não é mais aceitável hoje. Kant não conhecia o universo, não sabia que o universo ainda está em vias de se tornar, e, portanto, não sabia quem realmente somos, de um modo que a própria ciência nos ensinou.

Não há motivos para o cristão temer a Teoria da Evolução, então?

Sei que estou queimando etapas nessa conversa, mas é exatamente isso: a evolução, se interpretada corretamente, não precisa ser o fim da fé.

Pelo menos metade dos pensadores cristãos nos Estados Unidos – talvez até no mundo – acredita que é seu dever proteger a fé contra o pensamento evolutivo. A maioria dos eleitores do Partido Republicano nos EUA não aceita a evolução. Metade dos norte-americanos ainda não aceita a evolução. E isso é uma grande oportunidade perdida porque, uma vez que você a aceita, precisa ter pensamentos maiores do que antes sobre quem você é, qual a sua vocação, qual o seu destino, e especialmente sobre quem é Deus. A ideia de um Deus que espera e que dá liberdade ao universo para se desenvolver proporciona uma estrutura para interpretar a ciência evolutiva sem precisar retalhá-la, como tantos teólogos têm feito. Eles (e os filósofos também) cortam partes dela, aproveitam algumas e descartam o que incomoda. Eles não olharam para a teoria como um todo.

Os principais ingredientes da teoria evolutiva são: muitos acidentes, as leis físicas, e muito tempo. Se você olhar para esses três ingredientes, verá que são os ingredientes de toda história. Toda história tem um certo grau de indeterminação, mas também precisa de uma consistência que a mantenha contínua ao longo de suas etapas. E também precisa de muito tempo para se desenrolar. Esse é o nosso universo: uma história. E a história pode carregar um sentido.

É isso que minha teologia enfatiza agora. Esse significado não é algo totalmente claro. Podemos ver o que já aconteceu no universo, a transição da matéria inorgânica para a vida, depois para a consciência, e para todos os outros traços de inter-relação – por exemplo, a capacidade de pensar e amar – e desenvolver isso. Essa é a nossa vocação, e é assim que contribuímos para o contínuo despertar do universo. Temos um grande trabalho a fazer, trabalho que deveria nos trazer autoestima em relação ao significado de nossas vidas. Nós não tínhamos isso – na verdade, ainda não temos, em boa parte do que passa hoje como cristianismo e até mesmo como teologia cristã.

“A ideia de um Deus que espera e que dá liberdade ao universo para se desenvolver proporciona uma estrutura para interpretar a ciência evolutiva sem precisar retalhá-la, como tantos teólogos têm feito.”

John Haught

Os católicos estão mais bem equipados que outros cristãos, como os evangélicos, para lidar com a Teoria da Evolução?

Não estou muito certo. Eles não se permitem ser desafiados por ela. Têm uma ideia vaga, mas, assim que entram na escola e estudam a biologia, a física e a química envolvidas na evolução, surgem perguntas. Nos Estados Unidos, a maioria dos católicos que frequentam aulas de Biologia nas universidades perde a fé, porque eles veem o tema de perto pela primeira vez. Então, meu trabalho como teólogo tem sido lidar com esses católicos e cristãos desiludidos, e dizer a eles que não precisam se preocupar, só precisam pensar de maneira mais ampla sobre a vida em termos de uma história cósmica, um despertar cósmico, um drama, e sentir-se parte disso.

Claro que há perigos, há recaídas, há becos sem saída. Toda boa história tem becos sem saída que, em um primeiro momento, parecem não fazer sentido algum. Mas, se você continuar lendo, der uma chance ao livro, confiar e tiver esperança – até porque sem esperança você não continuará lendo –, então a história pode se revelar. O problema dos novos ateus (e também dos velhos ateus, embora em menor grau) é que eles decidiram parar de ler – ou nem sequer começaram a ler.

Mas também muitos teólogos católicos pararam de ler com atenção. Eles gostam de falar sobre o Big Bang e outras coisas, mas não olham para os detalhes, como a brutalidade e aspereza na história da vida, e o problema do sofrimento. Que sentido podemos dar a isso? Já não temos mais como simplesmente responder que tudo isso acontece porque nossos primeiros pais pecaram, o mundo caiu no pecado, e Cristo veio nos redimir desse pecado original. Para mim, a teologia é algo muito mais empolgante do que isso. Ela deve dar esperança às pessoas, mostrar que suas vidas têm um significado – e a vida toda: não apenas o sofrimento por que passam, mas também suas ambições, seus anseios, seu desejo de construir uma carreira. E eu acredito na ideia de um Deus que espera, um Deus que permite e deseja que vivamos nossas vidas, da forma mais plena possível. Para a maioria de nós, isso também significa saber lidar com o sofrimento, não rastejando, mas sempre com esperança. Para mim, esse é o ensinamento fundamental de Jesus. Quando Ele reúne seus discípulos e diz “confiem em Deus”, o que Ele está dizendo, no fundo, é que tenham coragem de esperar, e não esperem mágica.

O papa Francisco criticou essa visão de Deus como um “mágico com uma varinha”, e justamente quando falava da evolução…

O significado do cristianismo é que Deus é muito mais do que um mágico: Deus é um companheiro, que sofre ao nosso lado, que se importa, que nos conduz e nos reúne em uma comunidade de esperança. E, quando pensamos assim, surge espaço para dar sentido à evolução. Não tanto por meio da teologia natural (que só poucas pessoas são capazes de fazer, de qualquer forma), mas por meio do sentimento de que algo realmente grande está acontecendo no mundo.

No livro que estou escrevendo agora, sobre Einstein e Teilhard, tenho um capítulo chamado “Felicidade”. O que cada um deles entendia por felicidade? Einstein se considerava um homem muito religioso, no sentido de que ele percebia que o tempo é cruel e leva ao sofrimento e à morte. Então, ele fez o que Platão e os neoplatônicos (incluindo muitos católicos e cristãos ao longo dos séculos) fizeram: tentou aprender a se desapegar do tempo e cultivar a sensação de estar vivendo na presença da eternidade.

Isso pode trazer um tipo de felicidade, um tipo de “brilho espiritual”, mas não é a única forma de espiritualidade cristã. Há outra, que remonta aos primeiros concílios da Igreja, como Niceia e Calcedônia, que disseram, em resumo, que Deus ama o tempo e não quer nos tirar dele, mas quer que olhemos para a plenitude do tempo no futuro. Isso nos deixa mais bem dispostos em relação ao mundo – e falo do mundo material. Então, podemos nos entusiasmar com a ciência, com a descoberta contínua do universo, e ter um novo tipo de vida cristã: uma vida de cuidado com a criação. É neste ponto que, infelizmente, não tivemos uma boa teologia ecológica, porque não tivemos amor pela Terra, pela natureza, pela matéria.

Suponho que o senhor tenha preferência por essa segunda forma.

Exato, e é por isso que Teilhard foi tão importante na minha conversão. Eu também cresci nesse tipo de catolicismo “desencarnado”, voltado apenas para o outro mundo. Não me entenda mal: ainda acredito que existe vida após a morte, mas, como falei em minha palestra, é uma vida em que temos esperança na ressurreição, que significa levar toda a história da nossa vida para dentro da vida e do cuidado de Deus. A ressurreição tem um significado cósmico, no sentido de que o universo inteiro pode ser levado para dentro da vida de Deus: a história inteira do universo, seus 13,8 bilhões de anos e tudo o mais que houver.

Isso amplia nossa compreensão de Deus e também de Seu cuidado divino. Deus se importa com a criação, com o que acontece no tempo; Ele nunca se esquece do que acontece, mas reorganiza tudo em uma grande beleza, como diz a encíclica Laudato Si’, do papa Francisco. E isso é o que chamamos de “visão beatífica” (um termo que já usávamos), mas essa visão beatífica não é algo fora do universo. É algo para o qual o próprio universo está despertando, de várias formas. E isso abre o futuro, pois não sabemos quantos volumes ainda estão por ser escritos nessa coleção da história cósmica.



Fonte: Gazeta do Povo

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