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‘Cyclone’ é gesto político de resgatar e reinventar uma mulher apagada da história


Uma das maiores forças do cinema está em sua capacidade de resgatar histórias e dar voz a personagens esquecidos ou invisibilizados pelo tempo. Cyclone, novo longa de Flavia Castro (Deslembro), a partir do roteiro de Rita Piffer, que chega à 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, faz exatamente isso. Inspirado na vida de Maria de Lourdes Castro Pontes — aqui Daisy Castro, ou Cyclone, como ela mesma se autodenomina —, o filme converte a tela em um espaço de memória e, mais do que isso, de reinvenção.

Na trama, Daisy (Luiza Mariani, Todas As Canções de Amor) é uma operária que divide seu tempo entre o trabalho em uma gráfica e a paixão pelo teatro, escrevendo peças que são assinadas por Heitor Gamba (Eduardo Moscovis, Ela e Eu). Ao conquistar uma bolsa de estudos em Paris, ela se depara com diversos obstáculos, incluindo o de viver em um mundo em que as mulheres não são donas do próprio corpo.

Em Cyclone, a diretora Flavia Castro coloca a protagonista no centro desse gesto político de retratar uma mulher que ousa reivindicar sua própria identidade numa época em que as mulheres ainda precisavam de autorização do pai ou do marido para viajar.

Ao redor da protagonista, as mulheres se reconhecem, se apoiam e se salvam quando podem. Essa sororidade não é apenas conceito ou panfletagem, é prática — algo vivido, sentido e registrado na tela: as personagens de Karine Teles (A Vilã das Nove) e Magali Biff (A Felicidade das Coisas) dão corpo a essa rede de afetos e resistência, mostrando que, mesmo quando o mundo lhes nega o palco, as mulheres seguem lutando por sua própria sobrevivência e por espaços de criação.

Nesse entrelaçar de vidas, Cyclone reforça que a emancipação individual está sempre ligada à coletividade — aqui, predominantemente feminina, enquanto os homens aparecem apenas como representantes de um poder que lhes nega qualquer tipo de liberdade.

Por exemplo, ao contrário do destino trágico da mulher real, coagida a abortar e morta dias depois, a Cyclone de Flavia Castro e Luiza Mariani escolhe seu próprio caminho. A decisão de interromper a gravidez indesejada parte dela — um gesto de autonomia e coragem que não apenas reescreve o passado sob a ótica do presente, mas também reafirma a potência de seu corpo e de sua voz como território de liberdade. É o cinema como reparação: a arte devolvendo a uma mulher o direito de narrar sua própria história, de assumir suas escolhas e de resistir às amarras que tentaram silenciá-la.

Cyclone é ambientado em uma São Paulo dos anos 1919 e, para retratá-la, Flavia evita a pompa das grandes produções de época, substituindo cenários e figurinos suntuosos por um realismo sensorial, em que ruídos, texturas e pulsações — das obras da cidade em construção e das ruínas — se confundem com o turbilhão interno da protagonista.

A opção por planos mais contidos e próximos aos atores — evitando planos abertos — poderia soar como limitação de recursos; ainda que o seja, essa provável escassez fortalece a história e intensifica a veracidade das imagens. A decisão estética é também política: Cyclone não recria o passado, mas revela como ele reverbera no presente. A liberdade formal da diretora ecoa o espírito da personagem, traduzindo, em forma e essência, o vendaval que foi Cyclone.

Com uma equipe majoritariamente feminina — fotografia de Heloísa Passos, montagem de Joana Collier e da própria Castro, direção de arte de Ana Paula Cardoso, figurinos de Gabriela Marra e caracterização de Mariah de Freitas, produção de Luiza Mariani, Joana Mariani e Eliane FerreiraCyclone reforça, também nos bastidores, o gesto coletivo de dar visibilidade a uma história silenciada.

Essa presença feminina não é apenas simbólica: é uma extensão do tema do filme, traduzindo na prática a sororidade e o cuidado com as histórias de mulheres que, como Cyclone, foram invisibilizadas. Cada presença carrega o olhar sensível de quem conhece de perto os desafios de existir e criar num mundo que ainda tenta limitar o protagonismo feminino.

Cyclone é, enfim, um filme consciente de que muitas das batalhas da protagonista vividas há mais de cem anos ainda ecoam nos tempos atuais. Corajosa, a Cyclone de Flavia Castro e Luiza Mariani é resistência: a dramaturga apagada finalmente ganha o palco, com o barulho e a fúria que sempre lhe foram negados. Ao reinventá-la, o longa não apenas lembra quem foi essa mulher, mas imagina quem ela poderia ter sido se o mundo tivesse permitido. E, ao fazê-lo, reafirma o poder do cinema como espaço de libertação.

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Angelo Cordeiro é repórter do núcleo de cinema da Editora Perfil, que inclui CineBuzz, Rolling Stone Brasil e Contigo. Formado em Jornalismo pela Universidade São Judas, escreve sobre filmes desde 2014. Paulistano do bairro de Interlagos e fanático por Fórmula 1. Pisciano, mas não acredita em astrologia. São-paulino, pai de pet e cinéfilo obcecado por listas e rankings.



Fonte: rollingstone.com.br

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