A brasileira Flávia Magalhães, cidadã americana cujo caso foi emblemático para os Estados Unidos sancionarem o ministro Alexandre de Moraes na Lei Magnitsky, vai apresentar às autoridades e à Justiça americana documentos oficiais e públicos que provam a participação de mais quatro ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) no bloqueio de seu perfil na rede social X, o que, para sua defesa, configura censura.
Flávia reside em Pompano Beach, na Flórida, há 23 anos, e tem cidadania americana desde 2012. Em junho de 2023, passou a ser investigada por Moraes por postar no X que o ministro teria se encontrado na prisão com Marcola, o chefe do PCC, associando-o ao crime organizado. Além de bloquear o perfil de Flávia no Brasil, Moraes suspendeu o passaporte brasileiro dela em setembro de 2023 e, em dezembro daquele ano, determinou sua prisão preventiva no âmbito do inquérito das fake news.
No fim de julho, quando incluiu Moraes na Lei Magnitsky, o Tesouro americano afirmou que ele foi punido por “minar os direitos de brasileiros e americanos à liberdade de expressão”. “Jornalistas e cidadãos americanos não foram poupados do excesso de extraterritorialidade de Moraes. De Moraes impôs prisão preventiva e emitiu uma série de mandados de prisão preventiva contra jornalistas e usuários de mídia social, alguns dos quais estão baseados nos Estados Unidos”, afirmou o órgão.
Era uma referência não só ao caso de Flávia, mas também do jornalista Rodrigo Constantino, que tem cidadania americana e também reside na Flórida. Antes, o Departamento de Estado revogou o visto de Moraes por “incentivar campanha ilegal de censura contra cidadãos norte-americanos em território americano”.
Flávia Magalhães mora nos EUA, publicou de lá a postagem e tem cidadania americana. Por isso, sua defesa alega que Moraes não poderia ter censurado ela em território americano. A análise de seu processo mostra que, além de Moraes, outros quatro ministros referendaram, na Primeira Turma do STF, a decisão do ministro que havia bloqueado o perfil de Flávia no X: Flávio Dino, Cristiano Zanin, Cármen Lúcia e Luiz Fux.
Entre 30 de agosto e 6 de setembro de 2024, num julgamento remoto, todos eles rejeitaram um recurso apresentado pelo X para desbloquear o perfil de Flávia. No recurso, a empresa alegou que o bloqueio integral representava censura por tempo indeterminado – uma vez que retirava do ar todas as postagens lícitas e impedia a visualização de futuras publicações – e que o Marco Civil da Internet, lei que regula as redes no Brasil, prevê apenas a remoção da postagem específica considerada ilícita.
A empresa ainda informou que a postagem foi publicada fora do território brasileiro e, por isso, não haveria obrigação da empresa de removê-la, muito menos bloquear o perfil e tampouco quebrar o sigilo dos dados de Flávia e enviá-los a Moraes para investigá-la, como também havia determinado o ministro em sua decisão de junho de 2023.
Moraes rejeitou o recurso por entender que o X não tinha legitimidade para atuar em defesa de Flávia e nem sequer analisou os argumentos da empresa, que ficou sujeita a multa de R$ 100 mil por dia caso descumprisse suas ordens. Dino, Zanin, Cármen e Fux acompanharam Moraes, sem apresentarem votos escritos.
Entre 20 e 27 de setembro de 2024, a Primeira Turma do STF voltou a analisar o caso, dessa vez ao julgar um recurso da defesa de Flávia contra o bloqueio, a suspensão do passaporte e a prisão preventiva, bem como com um pedido para ter acesso aos autos, para que pudesse contestar melhor a decisão, proferida sob sigilo. Dino, Zanin, Cármen e Fux novamente seguiram Moraes, que rejeitou o recurso sob o argumento de que ele não rebatia ponto a ponto os fundamentos das medidas impostas pelo ministro.
Em seu voto, Moraes expôs ainda que deixou de intimar Flávia por carta rogatória, meio legal pelo qual a Justiça brasileira deve notificar uma pessoa fora do território nacional e submetido à jurisdição estrangeira.
Nesses casos, a intimação deve ser encaminhada para o Ministério da Justiça, que, então, a envia ao órgão congênere nos EUA, o Departamento de Justiça. A carta deve conter a notificação traduzida para o inglês, identificação e endereço da pessoa, descrição do ato processual requerido, motivos da solicitação, dados do responsável por eventuais custos e assinatura do juiz.
O Departamento de Justiça analisa se o ato pedido – a citação – atende aos requisitos do tratado bilateral entre Brasil e EUA, conhecido como MLAT (Mutual Legal Assistance Treaty), para, então, determinar a citação da pessoa no território americano.
Moraes driblou esse procedimento por considerar que Flávia estaria “foragida” e que tinha defensor constituído no processo.
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Em entrevista à Gazeta do Povo, Flávia disse que vai buscar a punição de Moraes e dos demais ministros que bloquearam seu perfil no Brasil. “Violadores de direitos humanos”, diz a brasileira, em referência ao motivo que levou o governo americano a sancionar Moraes, em julho, com a Lei Magnitsky, que proíbe empresas com negócios nos EUA de fornecerem serviços a seus alvos.
No início deste mês, Flávia obteve, por meio de sua defesa no Brasil, acesso à parte da investigação contra ela no STF. De posse dos documentos, ela agora suspeita que Moraes tenha mobilizado agentes da Polícia Federal para monitorá-la ou até mesmo prendê-la nos EUA durante uma manifestação de brasileiros da qual participou em apoio à anistia, na Flórida, em fevereiro de 2024.
Ela relatou à reportagem que, nesse dia, uma organizadora da manifestação a avisou de que dois homens da PF estavam no local para monitorá-la. Flávia diz haver prova de que um delegado da PF em Miami foi notificado do mandado de prisão.
“Tinha um com a camisa social branca e calça jeans, bem alto, sapato social. E outro de calça bege e blusa marrom. Se eu ver, sei quem é”, descreve. Segundo ela, nenhum deles a abordou, mas o segundo ficou andando em volta de uma barraca em que ficou servindo água para os manifestantes.
Na época, ela não sabia que havia contra ela um mandado de prisão preventiva, decretada quase dois meses antes, em 30 de dezembro de 2023, por Moraes. “Nunca imaginei que eles poderiam me levar daqui. Achava que estavam querendo ver o que eu estava fazendo. Com certeza absoluta eles estavam me monitorando”, diz.
Em regra, medidas desse tipo só podem ser realizadas no exterior mediante uma cooperação jurídica entre os países. Assim como na carta rogatória, caberia a Moraes solicitar aos EUA auxílio para adotar qualquer diligência contra Flávia em solo americano – medida que seria objeto de análise pelas autoridades americanas, sobretudo por tratar-se, no caso, de uma cidadã americana.
Flávia diz que advogados do X nos EUA entraram em contato com ela para analisar seu caso. Segundo ela, eles foram mobilizados pelo dono da rede social, Elon Musk, e pretendem ajudá-la a processar o ministro nos EUA.
Seu advogado no Brasil, Paulo Faria, viajou para os EUA e deve ter encontros com os advogados de Musk nos próximos dias, em Washington, capital dos EUA, onde também pretende apresentar novos detalhes do processo a autoridades americanas.
No ano passado, Musk passou a ser investigado por Moraes após criticar duramente o ministro nas redes por multar a empresa no Brasil e ameaçar prender seus executivos. Musk chegou a postar que queria ver Moraes na prisão. Nos EUA, a Rumble e a Trump Media, do presidente americano, processam Moraes na Flórida acusando-o de emitir ordens extraterritoriais.
A Gazeta do Povo enviou questionamentos ao ministro Alexandre de Moraes sobre o procedimento adotado contra Flávia Magalhães, principalmente sobre a suspeita de monitoramento pela PF em solo americano. Não houve resposta até o fechamento dessa reportagem. O espaço segue aberto para manifestações.
Com o passaporte brasileiro suspenso no Brasil e uma ordem de prisão em aberto, Flávia hoje teme visitar o país, como costumava fazer para rever amigos e familiares, principalmente em Recife (PE), sua cidade natal.
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Fonte: Revista Oeste