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Como o reparto se tornou a pulsação de Cuba


Para ouvir o reparto em Havana, você não precisa ir longe.

Está tocando em todos os táxis, em todos os cafés que margeiam La Habana Vieja, nas noites de sexta-feira no Don Cangrejo e nas manhãs de sábado no Mio y Tuyo. Uma mistura caseira de reggaeton e ritmos tradicionais cubanos, é a trilha sonora preeminente de Cuba hoje — e continua surgindo com força dos bairros da ilha.

Em espanhol, “reparto” significa diferentes coisas. Geralmente, a palavra pode significar “alocar” ou “dividir e compartilhar”. Em Cuba, também é um termo da gíria que descreve bairros de classe trabalhadora nas periferias de Havana — comunidades residenciais marcadas por dificuldades, prédios em ruínas e escassez constante. É nesses distritos, através de artistas como Wampi e Wildey, que o reparto encontra um novo significado.

O reparto está enraizado na timba, um som cubano clássico que explodiu nos anos 90 e funde o son cubano, salsa, funk, música folclórica afro-cubana e jazz em um híbrido improvisacional. O reparto se constrói sobre essa complexidade misturando batidas de reggaeton com seu característico padrão rítmico de clave.

“Reparto são as ruas, o bairro, transformados em forma musical”, diz Wampi, cujo nome verdadeiro é Dasiel Mustelier Oruña. “É música para as pessoas se divertirem e dançarem”. O jovem de 22 anos tem mais de 200 milhões de reproduções no YouTube e Spotify, com hits como “Por Ustedes (Pornosotros 2)” e “Tienes Que Nacer de Nuevo“. Esses números provavelmente são uma subestimação. Em um país com cortes de energia diários, tanto sancionados pelo estado quanto espontâneos, internet extremamente limitada e plataformas como Spotify totalmente restritas, o reparto não se estabeleceu em Cuba através de ondas de rádio ou contratos com gravadoras. O gênero cresceu através de aplicativos de mensagens como Telegram e redes ilícitas como el paquete — o pacote — um sistema onde o conteúdo é compartilhado semanalmente via pen drives. Através de USBs passados de mão em mão, pelos alto-falantes de celulares em ônibus lotados, em festas noturnas com o mar ao fundo, nos repartos, ardente e desenfreado, o gênero fez seu nome.

Fora de sua própria casa, uma casa azul brilhante no bairro remoto de Arroyo Naranjo, a música de Mustelier Oruña infiltra-se pelas janelas, emanando das salas de estar e cozinhas vizinhas. “Com todos os problemas, as situações fula que existem em Cuba, o reparto é uma escapatória para as pessoas das ruas. Elas podem escapar através de uma faixa de reparto, isso traz alegria e as faz sentirem-se representadas”, diz ele.

Outros observam que a riqueza do reparto vem de suas raízes na vida real. O músico afro-cubano Cimafunk, cujo nome verdadeiro é Erik Alejandro Iglesias Rodríguez, tem acompanhado a ascensão do reparto enquanto lança sua própria carreira global com sons de funk e hip-hop. Fazendo fotos atualizadas num domingo abafado em Havana, ele fica com o queixo erguido no centro de um fundo branco que vai do chão ao teto, sem camisa sob um colete de pele combinado com calças boca de sino de cetim, óculos escuros grandes e uma gargantilha. Na mesa de seu camarim, há mais seis pares de óculos escuros. Entre as fotos, ele toma cerveja de um copo de plástico, troca de roupa sem fechar a cortina e responde às perguntas.

“Eu não sei nada sobre música”, brinca o artista três vezes indicado ao Grammy e recente performer do Coachella. “Coloque no artigo: ‘Esta é a opinião pessoal de Cimafunk. Qualquer contradição, o problema é seu.’ Exatamente assim.” Ele continua: “Reparto é uma atitude e um modo de vida. É por isso que as pessoas dizem, ‘Você é um repartero,’ ‘Você é uma repartera‘ — é um estilo de vida. Acho que em Cuba, praticamente todo mundo é repartero. As pessoas nas ruas estão constantemente criando, porque estão constantemente vivendo.”

UM DOS MAIORES sucessos de Mustelier Oruña, “Por Ustedes (Pornosotros 2)“, faz sampling de “Mambo Influenciado“, uma faixa da lendária banda cubana Irakere que demonstra a interação entre ritmos afro-cubanos e improvisação do jazz. Em faixas anteriores, Mustelier Oruña colaborou com o ex-boxeador e também artista de reparto Wildeys García Cascaret, conhecido simplesmente como Wildey. Cascaret atribui o estilo ao grupo cubano Gente de Zona, mas diz que ele realmente se formou quando artistas como Elvis Manuel e Chocolate MC impregnaram suas letras com gírias cubanas, refletindo “como as pessoas falam nos repartos”.

De boxeador competitivo a músico no topo das paradas, Cascaret veio das ruas e alcançou a fama rapidamente, assim como o próprio reparto. Ele se tornou uma das vozes mais reconhecíveis da música urbana cubana contemporânea, com letras sem restrições e vocais que continuam ressoando com o público em toda a ilha e além. “Quando eu tinha 15 anos, comecei a cantar como hobby, fiz um super hit, e foi assim que aconteceu. Tenho sido uma pessoa com muita sorte nesse mundo da música”, diz ele, reclinando-se em uma cadeira de plástico e segurando um vape rosa.

Durante sua carreira no boxe, em seu tempo livre, ele formou o grupo Ire Oma com o companheiro repartero Harryson. O videoclipe do single de sucesso “P6P9” — nomeado após dois ônibus cubanos — alcançou mais de um milhão de visualizações, catapultando suas carreiras musicais. Embora o grupo tenha se separado cerca de um ano depois, Wildey encontrou sucesso em sua carreira solo, ganhando reconhecimento internacional com suas músicas “Tengo Money” e “Normalmente“.

“Tudo o que acontece nos bairros é reparto”, diz ele. A música reparto incorpora suas experiências, lutas e aspirações. O som é caracterizado por letras provocantes e autorreferenciais, salpicadas de jargões hiperespecíficos e duplos sentidos.

Alguns críticos do reparto, no entanto, têm problemas com a natureza explícita do gênero. Quando o Irakere ganhou o Grammy de Melhor Gravação Latina em 1980 com seu álbum homônimo, enfrentou reação semelhante. O baterista da banda, Enrique Plá García, observa que isso é parte da vibe: “Em termos de estilo, para que o groove pegue, às vezes precisa ser levemente vulgar, e nem todo mundo vai gostar disso”, diz ele.

Seu conselho? “Tente encontrar o equilíbrio entre as ruas e a academia. Nunca dê as costas para nenhum dos dois, mas encontre o equilíbrio.” Rodríguez oferece uma solução diferente: “Seria bom se as mulheres fizessem a mesma coisa também. Precisamos de mais mulheres fazendo reparto. É isso que está faltando neste gênero — mais reparteras.”

“O que é ruim é quando há agressão, quando há posse, quando há machismo”, diz Rodríguez. “Falar sobre sexualidade é necessário. O que é ruim é a agressão que vem com isso, quando você diz, ‘Você é uma demônia, você é uma vagabunda, você é uma cadela‘, entende?… Quando ganha popularidade, você precisa ter cuidado porque muitas pessoas vão ouvir. Crianças pequenas vão ouvir, meninas pequenas vão ouvir, então elas crescerão pensando que é isso que elas são.”

Rodríguez apoia artistas como Mustelier Oruña, que escreve letras sensuais que evitam a misoginia. “Para mim, isso é o mais inteligente a se fazer — começar a limpar os textos, não falar mal das mulheres, não falar mal de ninguém”, diz Rodríguez. “Não há necessidade disso. O que ele está fazendo, para levar isso ao mundo, é perfeito, e as pessoas sentem isso.”

Distinguindo-se dos outros por seus anos de treinamento clássico estudando saxofone na Escola Nacional de Música de Cuba, Mustelier Oruña está entre uma nova geração de artistas que impulsionam o gênero. Seu álbum, intitulado El Rey de Habana, significa seu afastamento do que é tipicamente reconhecido como reparto, fundindo R&B, funk brasileiro, Jersey club, Afrobeats e reggaeton. “Este álbum significa que reparto não é apenas um estilo, não é apenas uma célula rítmica. Reparto não é apenas a clave e o bombo com um monte de velhos. Para mim, vai muito além disso, porque na realidade, a base do reparto é afro-cubana”, diz ele, enquanto sua mãe, com um sorriso silencioso, coloca uma caixinha de suco ao seu alcance.

El Rey de Habana apresenta colaborações com artistas latinos que abrangem gerações, incluindo a clássica banda cubana Los Van Van, o DJ haitiano Michaël Brun e o cantor cubano Leoni Torres. A segunda colaboração de Mustelier Oruña com Rodríguez, lançada em agosto como um single intitulado “Que Bola“, reduz suas letras normalmente carregadas de jargão a apenas uma frase. Provavelmente o ditado mais comum em Cuba, “asere, que bolá” é essencialmente a forma cubana de dizer, “e aí, mano?”

“É um experimento para que as pessoas ao redor do mundo aprendam a gíria cubana através da música”, diz Mustelier Oruña. Seu afastamento das características identificadoras do reparto em favor de batidas e letras simplificadas pode ajudar a ampliar seu público e impulsionar o sucesso no exterior.

Apesar da crítica, da luta econômica e das restrições à internet que os artistas enfrentam em casa, o reparto tem ganhado tração internacional. Com turnês no exterior se tornando cada vez mais comuns, o alcance do gênero agora se estende à diáspora cubana. No final de 2024, o repartero Bebeshito fez história ao lotar o Estádio Pitbull em Miami com quase 20.000 fãs. Valentina Alfonso Puente, uma fã cubano-americana de nove anos, quase desmaiou de emoção: “Estou literalmente tremendo. Estava morrendo de vontade de vê-lo. Ele é meu cantor favorito.”

Na verdadeira moda cubana, o show começa com quatro horas de atraso. O local se enche de milhares de luzes vermelhas e azuis. Os fãs usam pulseiras brilhantes e batem os pés em uníssono, sacudindo o chão e cantando em uma envolvente demonstração de orgulho cubano-americano. Bebeshito faz uma pausa e o público canta suas letras de volta, suas vozes ressoando ainda mais alto que os vocais dos cantores. No caminho, um motorista de Uber reclamou do trânsito, completamente alheio ao que estava acontecendo na esquina.

Assim como a palavra abrange diferentes significados, a história do reparto é nuançada. É um som nascido em áreas assoladas pela pobreza, mas que pulsa com uma alegria irreprimível. É um lembrete de que a reinvenção é tanto uma parte da cultura cubana quanto o próprio ritmo.



Fonte: rollingstone.com.br

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