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mais antigo que a internet e a própria música


Acredito que vimos os memes surgirem e se acomodarem ao nosso vocabulário, mas eles já estavam impregnados em nossa cultura desde tempos remotos, e nos contam sobre nosso caráter evolutivo. Pasmem: há uma ciência que estuda os memes e seu nome é memética. Quem inventou o termo foi Richard Dawkins, biólogo britânico, para se referir à evolução da espécie, mas nos aspectos culturais. Se no aspecto biológico — aquele do Darwin — o que define a evolução da espécie é o gene, no aspecto cultural, nossa evolução é definida pelo meme.

Segundo Susan Blackmore, em seu livro The Meme Machine (“A Máquina de Memes”, na tradução livre) meme pode ser qualquer coisa que possa ser aprendida facilmente e transmitida enquanto unidade autônoma: ideias, desenhos, habilidades, conceitos, pré-conceitos, palavras, línguas, receitas e também música.

Uma canção de ninar, que sua mãe cantou para você e sua avó cantou para ela, que aprendeu com sua bisa, etc., pode ser considerada um meme. Assim como aquela receita passada de geração em geração, que leva horas para ficar pronta, e no auge da expectativa familiar para a sua degustação tem o anticlímax inevitável proporcionado pelo tiozão de humor refinado: é pavê ou pacumê? Meme.

Humor e música andam juntos desde tempos incontáveis, assim como são incontáveis os memes da internet feitos a partir de música. Então vamos recortar aqui mais o assunto e falar de um tipo específico de meme, os que transformam música, onde aparentemente não havia nada musical ali. E isso vem sendo feito antes mesmo da internet existir.

O ano de 1912 talvez seja um bom ponto de partida para algo que temos registro. O compositor alemão Arnold Schoenberg, na peça Pierrot Lunaire, trouxe o Sprechstimme (“voz falada”). No espetáculo, a voz é notada em uma partitura não para o canto, mas para a fala. Ou seja, o intérprete segue as alturas e ritmos escritos, mas não sustenta a nota como no canto; em vez disso, desliza para cima ou para baixo, aproximando-se mais da fala. E não há um tom definido, igual nossa fala. Guarde essa informação!

Na trilha de Schoenberg, veio o italiano Luciano Berio, também explorando a fala como canto, com a peça Sequenza III per voce, em 1965. Na peça ouvimos o canto, a fala e as expressões vocais, como risos, interjeições, em uma constante intersecção, como é com nossa voz, naturalmente.

Essa história de canto-falado na cultura popular sempre foi algo comum. Aqui no Brasil, a tradição do coco, da embolada, por exemplo, para um ouvido desatento e talvez culturalmente europeizado e viciado pode parecer pouco melódica, mas poucos seriam capazes de cantar a Língua Grega como Bezerra da Silva no álbum O Rei Do Côco Vol.1, de 1973.

Bezerra, pernambucano, cresceu envolto nessa atmosfera sonora do pregão da feira, animais da natureza, emboladas, assim como outros tantos artistas geniais do Brasil, como Hermeto Pascoal, o ouvido mais aguçado e sensível que a música contemporânea testemunhou, sem sombra de dúvida, tanto que a esses sons considerados “não musicais” que estão à nossa volta deu o nome de “Os Sons da Aura”.

Em 1970, Hermeto, na música “Velório“, iria reproduzir, qual fizeram os vanguardistas Schoenberg e Luciano Berio, as texturas de vozes presentes em um velório, para nos trazer essa ideia de sobreposições de vozes, compondo um instrumento só de canto-falado e essa experiência continuou a ter desdobramentos ao longo de sua carreira.

Airto Moreira, Flora Purim e Hermeto Pascoal em 1970 (Foto Hulton Arhive/Getty Images)

Eu disse que era importante lembrarmos que nossa fala é atonal, não possui um tom e não respeita uma escala musical: ela flui. E por isso mesmo, para notar as suas nuances, precisa-se de um bom ouvido. Em 1984, o músico, utilizando-se do que há de mais memético, gravou “Tiruliruli“. Uma musicalização a partir do bordão de narração do lendário locutor Osmar Santos, extraído da partida entre Flamengo e Corinthians, no mesmo ano. O gol de Sócrates rendeu uma melodia “cantada” pelo locutor, digna de ser transcrita e acompanhada por um harmônio (uma espécie de órgão que funciona à base de um fole; o som é quase de sanfona). Futebol, narração, bordão e música. Tudo cultura capaz de ser reproduzida de forma autônoma. Tudo meme!

Outros exemplos de “Sons da Aura” na obra de Hermeto aparecem em cima da voz do ex presidente Fernando Collor de Mello em “Pensamento Positivo”, ou em cima da fala do poeta Mario Lago, declamando sua poesia Três Coisas, também em “Aula de Natação“, todas faixas presentes no álbum Festa dos Deuses, de 1992.

Na trilha dos “Sons da Aura”, Steve Reich, um dos mais importantes compositores da música minimalista, traria ao mundo Different Trains, uma obra composta pela orquestração a partir de 46 depoimentos de sobreviventes ao holocausto nazista. Um ano depois, viria o guitarrista canadense René Lussier com o LP Le Trésor de la Langue (“O Tesouro da Língua”), explorando o sotaque e a musicalidade do idioma francês falado em Quebec, Canadá.

Os músicos Públio Delgado, Mono Neon e Charles Cronell trouxeram a experiência do Alagoano de Arapiraca para o YouTube e memes musicais. Um tanto quanto nerds e específicos para músicos, devo admitir, tornaram-se globalmente conhecidos e inspiraram produções por aqui, onde o “Som da Aura” encontra com uma forma de arte proveniente da cultura dos griôs do oeste africano (membros da sociedade responsáveis por manter a memória viva através da oralidade) e que desaguaria no rap. Falo aqui do spokenword, uma arte performática capitaneada pelo grupo The Last Poets, cujo integrante Gil Scott-Heron iria nos legar o hino “The Revolution Will Not Be Televised“, em 1970, referenciado durante a performance de Kendrick Lamar no Superbowl 2025. O mesmo Scott-Heron aparece em paródia com o personagem Rafael do Gueto, em Um Maluco no Pedaço. Mais uma vez aqui, música, memória, piada, cultura. Tudo meme.

Sou testemunha do encontro dos “Sons da Aura” com o spokenword no tempo que trabalhei como compositor para o álbum Xenia, de 2017, de Xenia França, indicado ao Grammy Latino na categoria Melhor Álbum Pop em Língua Portuguesa no mesmo ano. Em uma das faixas, intitulada “Garganta – Interlúdio”, a atriz Roberta Estrela D’alva, uma das fundadoras do teatro hip hop no Brasil, interpreta sua poesia Garganta, musicada pelo pianista Fábio Leandro e pelo baterista Vitor Cabral.

Esse último exemplo, para mim, exemplifica, a essência da potência dos memes, onde temos a cultura pop servindo como plataforma de artes a culturas existentes desde os tempos mais remotos, como a cultura memética griot que se desdobra no tempo, desaguando no rap, o lastro das paradas de sucesso do século XXI ou nas culturas populares que fundam a música brasileira, lastro para a criatividade e renovação musical global, como a embolada, o coco, o funk.

Apesar de serem palavras diferentes, gosto da “justiça poética” que há na rima entre as duas palavras, gene e meme, pois há um propósito comum nelas, implícito à nossa sobrevivência. Fica aqui a reflexão: de que adiantaria seguir nossa existência, perpetuada por uma evolução genética, se não pudéssemos evoluir enquanto espírito, através de nossas histórias, nossa arte, nossa cultura, nossos medos. Nossos memes?

+++LEIA MAIS: Chorando Canções


Lucas Cirillo (@cirigaita)

É produtor, compositor, gaitista, membro da Latin Grammy Academy, autodeclarado nerd sonoro, gosta de mergulhar no abissal dos álbuns e trazer histórias para suas produções, para superfície, junto com alguns peixes, quando o rio tá bom pra pesca: sua outra paixão.



Fonte: rollingstone.com.br

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