Para cada duas famílias que recebem o Bolsa Família, uma sai da força de trabalho. A conclusão, de pesquisa do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), comprova um efeito colateral da forte expansão do programa nos últimos anos: ele passou a desestimular a busca por emprego formal.
O Bolsa Família se agigantou desde a pandemia: o valor médio mais que triplicou e o número de famílias atendidas teve forte aumento. Uma das consequências é a redução da oferta de mão de obra. Com mais dinheiro vindo do governo, parte dos beneficiários não está interessada em emprego com carteira assinada.
Parcela da população ocupada ou procurando trabalho segue abaixo dos níveis pré-pandemia
Essa influência do Bolsa Família sobre a oferta de mão de obra ocorre em meio a cenário de aquecimento do mercado de trabalho, ainda que as contratações estejam subindo em ritmo mais moderado.
A taxa de desemprego em junho foi de 5,8%, a menor da série histórica, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse índice reflete a fração da força de trabalho que está em busca de ocupação.
Ao mesmo tempo, a taxa de participação das pessoas maiores de 14 anos na força de trabalho ainda não voltou aos níveis anteriores à da pandemia da Covid-19, em 2020. Em dezembro de 2019, 63,4% dos brasileiros em idade ativa estavam trabalhando ou procurando emprego. Em junho de 2025, esse índice foi de 62,4%.
O Bolsa Família passou por uma transformação radical desde a pandemia. De um auxílio modesto, tornou-se um programa de R$ 170 bilhões anuais. Essa expansão trouxe benefícios sociais, mas também revelou um “custo oculto”: a redução da participação no mercado de trabalho, especialmente entre jovens homens das regiões Norte e Nordeste.
O problema maior está no Nordeste. A taxa de participação, que era de 56% no último trimestre de 2019, ficou em 54,1% no primeiro trimestre deste ano. A única região que teve um avanço – e, mesmo assim, considerado marginal pelos economistas – foi o Sul, onde a participação no mercado de trabalho passou de 66,8% para 66,9% no mesmo período.
Do auxílio modesto ao orçamento de R$ 170 bilhões
A transformação do Bolsa Família começou em 2020, no governo de Jair Bolsonaro (PL), com a instituição do Auxílio Emergencial, que se consolidou no Auxílio Brasil. Os valores pagos por família saltaram de uma média de R$ 190 ao mês em 2019 para R$ 600.
Em 2023, com a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o nome original foi retomado. Houve um redesenho nos benefícios, e o valor médio chegou aos atuais R$ 670 — um aumento de 253% em relação a 2019. O número de famílias atendidas passou de 14 milhões para 21 milhões desde 2017. E o orçamento disparou de R$ 35 bilhões para R$ 170 bilhões.
Bolsa Família teve impacto direto na participação no mercado de trabalho e formalização
A mudança de patamar alterou fundamentalmente a dinâmica do mercado de trabalho. Segundo pesquisa de Daniel Duque, do FGV Ibre, o benefício médio agora corresponde a 35% da renda mediana do trabalho no Brasil — antes era apenas 15%. Não é coincidência que a taxa de participação no mercado de trabalho tenha caído de 63,6% ao fim de 2019 para 61,6% no primeiro semestre de 2023.
O estudo de Duque revelou uma causalidade direta: famílias que se tornaram elegíveis ao Bolsa Família em 2023 tiveram queda de 11% na taxa de participação no mercado de trabalho quando comparadas a um grupo similar não elegível.
“Para cada duas famílias que recebem o Bolsa Família, uma sai da força de trabalho”, resume o pesquisador. Uma vez dentro do programa, a probabilidade de o indivíduo estar ocupado caiu 12%, e a de ter emprego formal, 13%.
Jovens do Norte e Nordeste têm menos incentivos para ingressar no mercado de trabalho
Os impactos negativos se concentram em grupos específicos. Entre os homens, o efeito é quase exclusivo sobre jovens de 14 a 30 anos, tanto na participação quanto na ocupação. No caso da formalidade, homens de todas as idades são afetados. Regionalmente, Norte e Nordeste lideram a queda na participação masculina, embora a tendência de evitar o emprego formal seja nacional.
A lógica econômica por trás da informalidade
O desincentivo ao trabalho formal tem lógica econômica do ponto de vista do beneficiário. A renda garantida do Bolsa Família muitas vezes supera a perspectiva de ganhos no trabalho formal, naturalmente menos segura.
Mesmo com a “regra de proteção” — que permite manter 50% do benefício por dois anos após a formalização —, a conta precisa fechar para o trabalhador. O emprego formal deve compensar não só a perda parcial do benefício, mas também eventuais rendimentos informais já existentes.
Bolsa Família: o risco para o capital humano no longo prazo
O dilema é particularmente crítico para os jovens, que perdem oportunidades de aprendizado e experiência profissional, fatores decisivos para a formação do capital humano.
Segundo Fernando de Holanda Barbosa Filho, também do FGV Ibre, o atual Bolsa Família é “muito diferente do original”, e questões sobre seus efeitos negativos no mercado de trabalho, outrora “pacificadas”, voltaram ao centro do debate.
Educação como saída: transformando o problema em solução
Apesar dos desafios, o programa possui potencial imenso para transformação social positiva, avaliam os pesquisadores da FGV. Uma faceta promissora identificada por Duque: jovens de “maior habilidade” que recebem o benefício, embora reduzam a oferta de trabalho, aumentam a probabilidade de estarem matriculados em instituições de ensino.
Flávio Ataliba, do Centro de Estudos para o Desenvolvimento do Nordeste do FGV Ibre, argumenta que a saída de jovens do mercado não é necessariamente problema se eles buscarem qualificação. Com programas adequados de integração produtiva e treinamento, o aparente problema pode se tornar solução.
A proposta de redesenho do Bolsa Família
Daniel Duque propõe um redesenho estratégico: reduzir o benefício básico de R$ 600, desestimulando jovens sem perspectiva educacional a evitar o mercado de trabalho. Os recursos economizados seriam redirecionados para mães com filhos pequenos ou jovens que abandonaram os estudos por necessidade de renda. Essa abordagem pode ser combinada com outros programas, como o Pé-de-Meia.
A proposta vai ao encontro da visão de que o Bolsa Família deve ser “trampolim” para superar vulnerabilidade, em vez de uma âncora que mantém a inatividade. Para isso, é fundamental articular o programa com educação, saúde e incentivos à produtividade — cursos técnicos alinhados ao mercado, estímulo ao empreendedorismo e formalização empresarial.
Fonte: Gazeta do Povo