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O documentário da Netflix que vai fazer você repensar o sistema carcerário


A música, mais do que um produto ou qualquer outra coisa, é um ato sagrado. Essa é a premissa central de Canções do Cárcere, documentário de 90 minutos da diretora Contessa Gayles, disponível na Netflix. O filme premiado destaca a trajetória de James “JJ’88” Jacobs, artista e ativista nascido em Long Beach, que evoluiu de um jovem de 15 anos desorientado, autor de um assassinato, para um farol do que ele chama de “utilidade da não violência, da arte para contar histórias e da vulnerabilidade”. No documentário — que conquistou dez prêmios no circuito de festivais de cinema em 2024 —, Gayles costura habilmente gravações de ligações telefônicas feitas da prisão por JJ’88, um álbum visual criado por ele durante o encarceramento e um relato cru, no estilo “mosca na parede”, sobre como sua família o apoiou ao longo de sua pena e nas repetidas tentativas de obter liberdade.

JJ’88 deixou a prisão em 2022, após 18 anos. Mas antes de ser fisicamente libertado, foi espiritualmente liberto por um encontro inesperado com o homem que matou seu irmão. O documentário oferece um vislumbre da praticidade e da necessidade da justiça restaurativa, ecoando os temas do filme de Gayles de 2018 para a CNN, The Feminist on Cellblock Y, sobre o então preso e produtor Richie Reseda, que fundou um grupo feminista na cadeia (Reseda é coprodutor de Canções do Cárcere e produziu os beats sobre os quais JJ’88 rimou). Segundo Gayles e JJ’88, que falaram sobre o filme em uma exibição em julho, em Nova York, a produção levou vários anos e começou enquanto ele ainda estava encarcerado, o que trouxe desafios logísticos (JJ’88 saiu da prisão oito meses após o início da edição). O roteiro do álbum visual foi escrito por ele inspirado em Lemonade (2016) e no álbum homônimo de Beyoncé, reunindo canções compostas na solitária e gravadas com a ajuda de Reseda.

Gayles contou que completava, em média, um videoclipe por mês, integrando-os ao restante das filmagens. Inicialmente, houve a ideia de diferenciar os clipes do material documental bruto com proporções de tela distintas, mas a diretora decidiu manter tudo uniforme. Foi a escolha certa: a apresentação visual fluida manteve o ritmo vivo enquanto JJ’88 narrava sua história, alternando fotos antigas e vídeos da família Jacobs com cenas do álbum visual, que, a partir de sua experiência, dá centralidade a jovens negros, mães e ao sistema de justiça.

O filme traz representações recorrentes de JJ’88 adolescente e adulto encarcerado, além de outro ator interpretando seu irmão Victor, morto três dias após JJ’88 cometer um homicídio em um ato que ele próprio admite ter sido “sem sentido”, motivado pela busca de reputação nas ruas. Reaparecem ainda cenas de crianças dançando, remetendo à infância perdida de Jacobs — e de tantos outros homens negros — para a violência das ruas.

Os vídeos e músicas, em camadas, evocam a estética artística de nomes como Kendrick Lamar e Vince Staples, explorando fé, moralidade, família e violência. Em uma faixa que lamenta as “ondas de crimes”, dois garotos se jogam no mar e se afogam, enquanto JJ’88 narra os perigos das ruas de Long Beach. Representando os encarcerados, ele emerge das águas como um homem em uniforme carcerário; já Victor, simbolizando vidas ceifadas precocemente pela violência, permanece criança. Ambos caminham até uma figura materna na areia.

Gayles conduz cada videoclipe com citações marcantes da rede de apoio de JJ’88: sua mãe Janine, seu pai William, a madrasta Jackie, a irmã Reneasha e a esposa Indigo. Em certo momento, William, pastor, fala sobre sua fé na libertação do filho, condenado à prisão perpétua. Logo em seguida, o documentário mostra-o pregando em um culto, entoando: “Tenho um louvorzinho que quero cantar”, que se funde suavemente à música reflexiva “wake up”, de JJ’88. A faixa se encerra com outra fala do pai: “Você já esteve preso? Em uma prisão espiritual?”.

O documentário mostra de forma poderosa uma rede de apoio que muitos homens na situação de JJ’88, cumprindo pena de prisão perpétua, não têm. Há momentos calorosos — como ele cantando com Indigo, brincando sobre envelhecer com a mãe e a irmã, ou comemorando quando autoridades estaduais reconheceram sua elegibilidade para libertação antecipada. Essa mesma família também esteve presente em suas quedas, como quando o pai o consolou após a negação de um pedido de liberdade condicional. O filme desenvolve cada uma dessas relações familiares, aumentando o peso emocional a ponto de o espectador sentir-se tão esmagado quanto William quando a ligação da prisão é cortada antes de sua despedida.

Em uma dessas conversas, JJ’88 chora ao dizer ao pai: “Eles não acreditam em mim”, relatando que a junta de condicional usou contra ele sua participação em um projeto musical chamado Defund The Sheriff. O momento expõe mais uma vez como o sistema de justiça criminaliza o hip hop em benefício próprio; neste caso, mantendo JJ’88 encarcerado. O filme mostra o rap como ferramenta que o ajudou a lidar com seus sentimentos e a se reabilitar — objetivo que, em tese, o sistema prisional deveria ter. Mas para o Estado, naquela audiência de condicional, sua música era apenas uma ameaça.

Como jornalista musical, estou acostumado a ver artistas venderem autenticidade, reivindicando que suas letras representam violência real. Já JJ’88, que de fato viveu a dureza das ruas — e aprendeu com os erros —, luta para que sua arte não seja vista sob uma conotação negativa. Enquanto muitos rappers desejam ser levados a sério como se “vivessem suas rimas”, ele quer ser levado a sério como ser humano produtivo. Essa contradição faz repensar o que realmente vale a “credibilidade” quando aqueles que julgam não conseguem enxergar sua humanidade.

O documentário é um forte argumento a favor dos benefícios da justiça restaurativa. Em uma das cenas, Indigo revela que foi vítima de violência sexual e se sentiu “retraumatizada” pelo processo criminal. Enquanto buscava “fechamento, justiça, cura, validação”, percebeu que o sistema não era capaz de oferecer isso, entregando uma das frases mais impactantes do filme: “O sistema não está me priorizando, está priorizando a punição — e a minha cura nunca poderia ser encontrada na punição de outra pessoa.”

Logo no início, JJ’88 conhece, na prisão, um homem chamado “J” e tem uma conversa poderosa com ele sobre o arrependimento de estar preso por assassinato, mas também sobre a consciência de que, como JJ’88 afirma mais tarde, “minhas falhas não diminuem o meu bem.” Ele admite que a forma como “J” abraçou sua humanidade o ajudou a fazer o mesmo, levando-o a confrontar o “luto, a covardia, a vergonha e a dor” que carregava após cometer o crime. A sociedade, em geral, espera que o acusado negue seus atos para tentar se livrar de uma condenação ou evitar o escrutínio público — mas foi apenas por meio da admissão e da reflexão sobre sua escuridão que JJ’88 conseguiu se curar e se perdoar. E, quando demonstrou misericórdia a “J”, cujo nome verdadeiro é Jamaal Smith, após descobrir que ele havia matado seu irmão, JJ’88 reconheceu que sua capacidade de perdoar o assassino do irmão era uma forma de expiar os próprios pecados. Quem pode saber como teria sido sua cura sem a oportunidade de falar com o homem que matou seu irmão? Essa circunstância aponta para a possibilidade de um sistema em que vítimas possam dialogar com os ofensores — especialmente quando esses têm a chance de enfrentar seu arrependimento fora da brutalidade da prisão. JJ’88 disse ter compreendido que o assassino de seu irmão era “mais um de nós”, refletindo sobre a multidão de homens desiludidos pelo sistema. E, assim como ele conseguiu enxergar a humanidade em Jamaal, a esperança é que o público também consiga reconhecer nele a capacidade de perdoar, refletir e crescer.

Durante o período em confinamento solitário, JJ’88 conta que sentiu o chamado de Deus e começou a escrever suas rimas sem nenhuma expectativa. É revigorante ouvir um artista — e um artista bastante talentoso — dizer isso em nosso ecossistema cada vez mais frio e obcecado por números. Sua experiência remete à gênese da criação musical, quando cantar era apenas uma chance de pessoas comuns se expressarem e darem sentido ao mundo. Quando as primeiras canções foram entoadas, não havia a possibilidade de se tornar uma celebridade inquestionável a partir delas — apenas a chance de desabafar, festejar ou viajar por onde a imaginação levasse. Canções do Cárcere talvez não faça as bases de fãs obcecadas por estatísticas abandonarem suas trincheiras para viver em harmonia, mas pode incentivar alguns de nós a tratar a arte e os artistas como algo mais precioso. Ainda que poucos tenham uma história tão cinematográfica quanto a de JJ’88 — que agora segue uma carreira como músico profissional —, todos merecem ser vistos como pessoas como nós, que simplesmente decidiram compartilhar sua expressão com o mundo.

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Fonte: rollingstone.com.br

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