Sempre evitei polêmicas gratuitas. Disputas dominadas pela vaidade entre católicos e protestantes só favorecem o avanço do secularismo progressista. Depois do Conclave, notei protestantes — inclusive pastores, não só fiéis que reagem nas redes sociais — difundirem vários erros sobre o papa.
Um deles é a ideia de que o papa se apresenta como “Cristo na Terra”. Isso é falso. Lamento, porque revela pouco contato com a doutrina real da Igreja. Nenhum católico sério afirma que o papa substitui o Senhor. A Igreja é cristocêntrica: Cristo é sua cabeça e único Salvador. O Bispo de Roma recebe outra tarefa, ao mesmo tempo modesta e pesada: servir como vigário, sinal visível da unidade que Cristo instituiu. É nisso que cremos.
Nossa referência primeira está no Evangelho. Jesus diz a Simão: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus”. Poderíamos encher bibliotecas com esse versículo; só não podemos distorcê-lo. “Chaves” alude ao mordomo real de Isaías, administrador da casa em nome do rei ausente. Pedro recebe a missão de confirmar os irmãos e, após a Ressurreição, é três vezes chamado a apascentar as ovelhas.
A sucessão, portanto, não é mero gesto simbólico. Torna-se instituição histórica prolongada na cadeia dos Bispos de Roma. Irineu, no século 2, enumera essa linha ininterrupta como garantia de ortodoxia. Cipriano de Cartago, no século 3, chama-a “cátedra única” que preserva a comunhão. Desde cedo, Roma é ponto de convergência eclesial, não trono de dominação. Muitos amigos reformados reconhecem o que nos aproxima e, ao mesmo tempo, respeitam as divergências. Faz parte.
A Igreja é cristocêntrica: Cristo é sua cabeça e único Salvador. O Bispo de Roma recebe outra tarefa, ao mesmo tempo modesta e pesada: servir como vigário, sinal visível da unidade que Cristo instituiu
Surge então a segunda dificuldade: a infalibilidade. O termo assusta porque se imagina um oráculo que decide tudo por capricho pessoal. A constituição Pastor Aeternus (Concílio Vaticano I, 1870) delimita a infalibilidade: vale quando o Papa, como pastor e mestre de todos os cristãos, define de modo definitivo doutrina de fé ou moral. É remédio, não privilégio. Garante que o depósito da fé não se dilua em modas intelectuais ou pressões políticas.
Outro ponto sensível é o primado. Muitos acusam Roma de centralismo autorreferente. Na verdade, o primado ordena, não absorve. O Catecismo fala em serviço à unidade: “O Pontífice Romano tem, em virtude de seu ofício, autoridade suprema, plena, imediata e universal para cuidar das almas”. Essa autoridade coexiste com a colegialidade episcopal: bispos governam Igrejas particulares e, juntos, participam de concílios. O papa não decide tudo sozinho; convoca sínodos, escuta especialistas, consulta as Igrejas orientais.
João Paulo II, na encíclica Ut Unum Sint, convidou comunidades protestantes e ortodoxas a ajudá-lo a encontrar formas de exercer o primado “reconhecidas por todos”. A proposta continua aberta: autoridade missionária, não centrada em si.
Ele mesmo formula a pergunta decisiva:
“A comunhão real, embora imperfeita, que existe entre nós, não poderia levar responsáveis eclesiais e teólogos a instaurar comigo um diálogo fraterno e paciente sobre este tema, pondo de lado polémicas estéreis e ouvindo apenas a vontade de Cristo: ‘Que todos sejam um […] para que o mundo creia’ (Jo 17, 21)?”
O diálogo avança quando se distingue pessoa e missão, primado e modo de exercício. Documentos conjuntos, como Do Conflito à Comunhão, pedem abordagem histórica e bíblica sem caricaturas.
Confundir o papa com um “substituto de Cristo” ignora a distinção ontológica entre Cristo e seu servo. O papa age in persona Christi Capitis apenas em atos sacramentais, como qualquer bispo, e nunca como usurpador. Ele proclama, guarda, serve. A “cátedra” indica magistério, não coroa de domínio. O papa veste branco — cor do batismo, não de realeza — e assina Servus servorum Dei, fórmula cunhada por Gregório Magno para lembrar que a verdadeira autoridade consiste em servir.
Devemos valorizar o que nos une. Protestantes e católicos confessam a mesma Trindade, acolhem a Escritura como Palavra de Deus e proclamam que Jesus morreu e ressuscitou. Divergem sobre a forma visível da Igreja, mas partilham o núcleo da fé. O papa, longe de obstáculo, pode ser sinal dessa caridade se compreendido na sua origem: guardião da fé comum, vigilante da esperança, incentivador da caridade.
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Fonte: Revista Oeste